Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico 4: Diversidade de gênero na força de trabalho do sistema de justiça criminal

 

Até o presente momento, este Módulo tratou da temática “Gênero no Sistema de Justiça Criminal”, a partir da perspectiva das pessoas em contato com as instituições da justiça criminal, especialmente mulheres, meninas e pessoas LGBTI que podem estar sujeitas ao aumentado risco de sofrer violação de seus direitos, em decorrência de presunções discriminatórias ou práticas baseadas em seu gênero, orientação sexual ou características sexuais.

Uma importante faceta desse tópico é o reconhecimento de que a composição da força de trabalho da justiça criminal influencia na forma como os indivíduos que entram em contato com o sistema de justiça criminal são tratados, independente de serem acusados, prisioneiros, testemunhas ou vítimas. Não é factível esperar que as instituições de justiça criminal sejam capazes de tratar todas as pessoas de forma igualitária, se a composição de sua força de trabalho não representar a diversidade existente na população em geral, e/ou for um ambiente onde persistem as práticas discriminatórias em relação aos recursos humanos. Dessa maneira, é imperativo que as instituições de justiça criminal ofertem oportunidades equivalentes a todos, com base em suas habilidades e qualificações, independente de seu sexo, gênero ou orientação sexual. Esta seção apresenta uma visão geral a respeito de assuntos-chaves relacionados à diversidade de gênero na força de trabalho da justiça criminal, com um enfoque especial no judiciário e na polícia.

A importância de se alcançar equidade de gênero na força de trabalho está inscrita nos instrumentos de direitos humanos, notadamente na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDCM) (Resolução da Assembleia Geral 34/180), a qual estipula que “Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera do emprego, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, os mesmos direitos” (1979, Artigo 11(1)). De modo mais concreto, a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995) convocou os governos, as organizações nacionais e internacionais e outros interessados de relevância para combater a violência de gênero e alcançar o empoderamento feminino e a ampla participação das mulheres em todas as esferas da sociedade, incluindo-se aqui o setor da justiça criminal. A Assembleia Geral das Nações Unidas instou os Estados Membros a assegurar equidade na representação de gênero na polícia e em outras agências do sistema de justiça, particularmente nos níveis de decisão e gestão (Resolução da Assembleia Geral A/Res/65/228, Anexo para. 16k). De modo semelhante, as Regras de Bangkok clamam pela capacitação das servidoras, de modo a incluir o seu acesso a postos superiores com responsabilidades determinantes para o desenvolvimento de políticas e estratégias (2010, Regra 29), mesmo acesso a treinamento que os servidores homens (2010, Regra 32), bem como um comprometimento claro e permanente por parte da administração penitenciária de gerir as unidades de modo a evitar e abordar discriminações de gênero contra as funcionárias (2010, Regra 30). O Conselho de Segurança da ONU, em sua histórica Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança, reforçou a importância da inclusão das mulheres em todas as etapas dos processos de tomada de decisões concernentes à prevenção, administração e resolução de conflito; assim como na manutenção e fomento da paz e da segurança (preâmbulo). Ademais, os Princípios de Yogyakarta (2017), apesar de não serem vinculantes, exortam os Estados a “Eliminar qualquer discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, para assegurar emprego e oportunidades de desenvolvimento iguais em todas as áreas do serviço público..., incluindo o serviço na polícia e nas forças militares, fornecendo treinamento e programas de conscientização adequados para combater atitudes discriminatórias” (Princípio 12(2)).

Apesar do arcabouço legal e normativo internacional existente, as instituições da justiça criminal, em especial a polícia, permanecem majoritariamente dominadas por homens heterossexuais. Regularmente, a UNODC reúne dados a respeito dos quantitativos e percentuais de mulheres policiais e juízas ao redor do mundo. De acordo com o apurado em setembro de 2018, os percentuais de mulheres policiais nos países estudados variam entre 3% e 37%, enquanto a maioria dos países permanecem entre 10% e 20%. O Gráfico 1 abaixo apresenta a taxa de mulheres policiais nos países selecionados.

Fonte: UNODC 

Globalmente, a proporção de mulheres que atuam como juízas aparenta ser muito maior do que as que compõem os quadros da polícia. Contudo, a variação dos percentuais entre os países também é muito maior. Para ilustrar, tem-se que, enquanto o percentual de juízas na Eslováquia a na Letônia é de 78%, no Tajiquistão e no Azerbaijão os valores caem para 16% e 12% respectivamente. O Gráfico 2 apresenta a distribuição dos percentuais de juízas, ao redor do mundo.

Fonte: UNODC 

Os dados comprovam a necessidade de incentivar e normalizar a diversidade de gênero, dentro da força de trabalho da justiça criminal, especialmente entre as polícias. Para tanto, as instituições da justiça criminal devem adotar estratégias de recrutamento, visando a garantia da diversidade de gênero em seus quadros, a retenção e o crescimento profissional com base no mérito para as pessoas de todos os gêneros, e garantir um ambiente de trabalho seguro para todos, especialmente para aqueles que sofrem risco de discriminação, como mulheres e LGBTIs (DCAF, 2015). Embora esteja fora do escopo deste Módulo, a discussão detalhada a respeito de cada estágio de gerenciamento de recursos humanos (recrutamento, retenção, promoção), a parte final restante dessa seção apresenta uma visão geral de alguns pontos selecionados dentro dessa temática ligados à questão da diversidade de gênero.

 

Recrutamento

A fim de avançar na diversidade de gênero, as instituições da justiça criminal podem implementar uma variedade de medidas, dentre as quais, estabelecimento de cotas ou metas, revisão dos critérios para seleção a fim de eliminar qualquer viés de gênero (por exemplo, com o ajuste das exigências físicas e de condicionamento de acordo com o gênero dos candidatos), e desenvolvimento de campanhas direcionadas à contratação de grupos subrepresentados (Denham, 2008, p. 12).

A título de ilustração, tem-se que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: a fim de promover a diversidade de gênero, passou a solicitar que os Estados membros ao apresentar suas listas tríplices para seleção, incluíssem, ao menos, um candidato de “sexo subrepresentados”. Como resultado, o percentual de juízas subiu de 26% em 2005, para quase 33% atualmente (PACE, n.d.; Quast, 2008, p.14).

É necessário pontuar, contudo, que o estabelecimento de cotas para grupos subrepresentados não é uma solução permanente. As medidas dessa natureza devem ser aplicadas de modo temporário, a fim de reparar pela discriminação e exclusão passada e presente, com a esperança de que o aumento da diversidade na força de trabalho seja mantido, a partir de uma série de outros mecanismos que também priorizem o bem-estar de toda a equipe de trabalho e o adequado funcionamento da organização (observe que a utilização de “medidas especiais”, incluindo as cotas, é reconhecida por instrumentos legais internacionais, dentre os quais, a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial). Ademais, as cotas devem ser pensadas e implementadas com a maior atenção, para que não prejudiquem o recrutamento com base no mérito, nem sequer aparentem fazê-lo. Nos casos em que a necessidade de aplicação das cotas não é bem comunicada, ou as etapas de desenho e implementação das cotas de gênero não são conduzidas de forma transparente, a repercussão junto à instituição policial será negativa, podendo incitar a revolta de seus membros, os quais crerão que as cotas de gênero afetam o recrutamento por mérito ou prejudicam a atuação policial. Além das cotas, instituições da justiça criminal podem aplicar outros mecanismos, como o estabelecimento de metas de curto e médio prazo; a implementação de programas especiais para treinamento, além de mentoria de possíveis candidatos integrantes de grupos subrepresentados.

Outro ponto central na etapa de recrutamento, é assegurar que a diversidade de gênero seja observada em todos os níveis de dada instituição, e não somente nos mais baixos. A contratação de agentes mulheres unicamente para as posições iniciais (para atuar nas unidades de patrulha, por exemplo), e não para cargos de supervisão ou decisão, não é suficiente para atingir o propósito de normalização da diversidade de gênero. Portanto, é importante realizar a coleta, revisão e análise dos dados sobre recrutamento e retenção considerando não só o gênero dos sujeitos, mas a sua posição.   

 

Retenção

Assegurar a diversidade de gênero dentro das instituições da justiça criminal requer medidas sequenciais após o recrutamento de pessoas integrantes de grupos subrepresentados. Essas medidas podem ser divididas em quatro grupos quando consideradas questões de gênero: (i) um grupo sobre as instalações físicas e equipamentos; (ii) outro sobre as políticas de gerenciamento de recursos humanos; (iii) outro sobre treinamento; e, por fim, (iv) um grupo focado em políticas relacionadas a assédio sexual e mecanismos de denúncia.

As instalações da polícia e das cortes devem ser pensadas e, se necessário, adaptadas, para serem inclusivas, levando em consideração as questões de gênero. Isso pode envolver, entre outras coisas, a construção de banheiros sem divisão por gênero, ou a garantia de que os uniformes e equipamentos sejam adequados para as mulheres que trabalham na instituição.

De modo a assegurar tratamento igualitário a todas as pessoas, as instituições da justiça criminal devem, periodicamente, revisitar suas políticas de gerenciamento de recursos humanos, examinando-as a partir da perspectiva de gênero. Isso envolve rever as regras a respeito das licenças maternidade e paternidade; garantir acordos de trabalho flexíveis e que levem em consideração as necessidades familiares da pessoa; iniciativas de apoio a serviços de cuidado infantil; além de um sistema de divisão de tarefas e promoção baseado no mérito do trabalhador. Por exemplo, em 2014, a Polícia de Serra Leoa (PSL) estabeleceu a Unidade de Gênero, que tinha a atribuição de revisar todos as políticas da PSL a partir de uma perspectiva de gênero, e atualizar a abrangente Política de Integração de Gênero no que fosse necessário (Ibrahim, Mbayo e McCarthy, 2015, p. 58). Bastick (2011) traz uma ferramenta de autoavaliação para a polícia, forças armadas e instituições judiciais.

Considerando que as políticas de gerenciamento de recursos humanos englobam a nomeação e promoção de funcionários, é necessário que política e prática estejam embasadas em um compromisso genuíno, com o alcance tanto da diversidade como da equidade de gênero na força de trabalho. Um risco considerável quando se fala em diversidade de gênero e grupos subrepresentados nas instituições da justiça criminal, é o ‘’tokenismo”, ou seja, a prática de contratação ou nomeação de uma pessoa pertencente a algum grupo subrepresentado com o simples objetivo de desviar as críticas e aparentar diversidade. Um exemplo seria a inclusão de uma juíza de primeira instância em um conselho judicial do qual, tradicionalmente, fizessem parte juízes de instâncias superiores. Em um caso como esse é quase impossível que a juíza chegue a ter um impacto significativo, além de que qualquer falha de sua parte somente serviria para reforçar os estereótipos em relação asà mulheres (Ibrahim, Mbayo e McCarthy, 2015, p. 55). Existe um arcabouço teórico estabelecido tratando da conceituação de tokenismo (Kanter, 1977; Zimmer, 1988) e, em particular, discutindo gênero e tokenismo na estrutura da polícia (Strochine e Brondl, 2011).

Outro risco associado à distribuição de tarefas e nomeação de funcionários mulheres e LGBTI, é a “restrição” de suas habilidades a questões relacionadas ao seu gênero; ou colocá-los em posições costumeiramente percebidas como “suaves”. Seria o caso de designar para as agentes de polícia tarefas relativamente “menos perigosas”, com enfoque mais social e de comunicação, como por exemplo, patrulhas de bairro, diálogo com a vizinhança e postos de apoio para responder a casos de violência doméstica; ao invés de designá-las para unidades de combate a terrorismo, crime organizado e departamentos de investigação criminal.

As associações de mulheres e pessoas LGBTI que trabalham em instituições da justiça criminal, a partir de atos de defesa, lobby e capacitação dos grupos que representam, desempenham o relevante papel de combater esses atos de tokenismo e a enviesada designação de atribuições (Gaanderse, 2010). No plano internacional, a Associação Internacional de Mulheres Juízas registra a importância de questões como o empoderamento das “mulheres de toga”, educação, e acesso igualitário à justiça com o fornecimento de condições e ferramentas para o fortalecimento de lideranças e aproximação das juízas (UNODC, 2018).

Uma medida importante na busca por assegurar uma força de trabalho inclusiva na justiça criminal, que considere a questão de gênero, é o fornecimento de treinamento regular a respeito dessa temática para todos os funcionários, a fim de contribuir para sua compreensão e conscientização em questões de gênero. Isso incluí treinamento sobre as várias formas de identidade e expressão de gênero e orientação sexual, os distintos tipos de discriminação direta e indireta em relação às mulheres, meninas e pessoas que se identificam, ou são percebidas enquanto, LGBTI, e sobre os estereótipos e vieses comuns ao se tratar de gênero. As capacitações dessa natureza poderão ajudar os oficiais da justiça criminal a identificar o papel desempenhado pelas políticas, práticas e atitudes envolvendo a questão de gênero tanto no dia-a-dia do seu local de trabalho, como, de forma mais abrangente, nas funções desempenhadas pelo sistema de justiça criminal.

Por fim, as instituições da justiça criminal deveriam instituir políticas claras para prevenção, detecção e investigação de todas as formas de assédio em razão de gênero e violência dentro de suas estruturas, ou entre seus funcionários. É necessário que existam mecanismos seguros e anônimos para que os funcionários da justiça criminal possam denunciar internamente a ocorrência de discriminação em razão de gênero, assédio e violência que eles sofram ou testemunhem.

Complementando o visto, o Módulo 5 sobre “Responsabilidade, Integridade e Supervisão das Forças Policiais” trata da diversidade de gênero na polícia, com enfoque particular em pessoas LGBTI.

 
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