Este módulo é um recurso para professores  

 

Prevenir a corrupção no setor público

 

Como reconhecido pelo artigo 5.º da UNCAC, os princípios básicos associados à prevenção da corrupção no setor público são o Estado de Direito, a boa gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a responsabilidade. Nos seus artigos 7.º e 8.º, a UNCAC incumbe os Estados de tomarem medidas específicas para garantir a adesão a estes princípios, nomeadamente através da adoção de sistemas baseados no mérito para o recrutamento e promoção dos funcionários públicos, o estabelecimento de critérios para a sua eleição para o desempenho de funções públicas, a melhoria da transparência no financiamento dos partidos políticos, prevenindo conflitos de interesses, promovendo a adoção de códigos de conduta no setor público e estabelecendo sistemas de declaração patrimonial. Medidas adicionais para prevenir a corrupção são invocadas nos artigos 10.º e 13.º da UNCAC, incluindo a promoção de uma maior participação das partes interessadas e de um governo aberto. Estas são medidas adicionais que podem ajudar a prevenir a corrupção no setor público, tal como discutido abaixo.

Outros módulos da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção abordam a prevenção da corrupção. Em particular, o Módulo 12 discute a UNCAC e outros instrumentos multilaterais que abordam a corrupção no setor público, inclusive requerendo aos Estados a adoção de medidas preventivas. O Módulo 13, por sua vez, ilustra como as medidas de prevenção da corrupção formam a base das políticas e esforços nacionais anticorrupção. Uma discussão mais detalhada sobre as medidas que incrementam a integridade e ética públicas está disponível no Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Integridade e Ética.

Códigos de conduta

Geralmente, os mecanismos de prevenção da corrupção integram normas que proíbem certos tipos de condutas. Estas normas não só incluem proibições legais face à corrupção e sanções criminais ou civis direcionadas aos setores público e privado (Williams-Elegbe, 2012), mas também códigos de conduta e de ética para os funcionários públicos. De acordo com o artigo 8.º da UNCAC, tais códigos devem ser utilizados para promover as caraterísticas pessoais (integridade, honestidade e responsabilidade) e responsabilidades profissionais para um correto, imparcial e honroso desempenho das funções públicas. Estes códigos fornecem orientações sobre como os funcionários públicos se devem comportar em determinadas situações e sobre como podem ser responsabilizados pelas suas ações e decisões. Além da UNCAC, existem outras iniciativas de organizações internacionais e regionais que reconhecem e promovem a implementação de códigos de conduta. Um exemplo é o Código Internacional de Conduta para Funcionários Públicos, adotado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1996.

Sistema de recompensas e incentivos

Num nível básico, todos os países devem estabelecer um sistema que recompense comportamentos apropriados e penalize os comportamentos corruptos no setor público. Este sistema deve incluir motivações extrínsecas, como salários decentes e um sistema de compromissos e de promoções baseado no mérito. Estudos compilados pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, 2017) sugerem que nem sempre se pode afirmar a existência de um vínculo invariável entre o pagamento de salários mais baixos aos funcionários públicos e a corrupção, embora, em alguns casos, salários mais elevados e promoções baseadas no mérito estejam associados a uma probabilidade mais baixa de se aceitarem pagamentos indevidos. Em termos de motivações intrínsecas, uma alta motivação por parte da equipa é crucial para que os esforços anticorrupção sejam bem sucedidos, havendo menor probabilidade de pessoas que consideram os seus empregos satisfatórios se corromperem (Kwon 2014). As sanções por comportamentos corruptos estão previstas em leis anticorrupção de muitos países, e as pesquisas revelam que, em alguns casos, sanções mais gravosas ou mais duras para comportamentos corruptos podem conduzir a uma diminuição da corrupção no setor público (Fisman e Miguel, 2007; Hasty, 2005).

Acessibilidade

Refere-se à capacidade de todas as empresas terem acesso a oportunidades de contratação pública (OECD, 2016). Uma total acessibilidade é fundamental para o aumento da concorrência na contratação pública e para a promoção da participação de pequenas e médias empresas (PME) na mesma. O acesso é promovido pela redução da burocracia inerente ao processo de adjudicação e contratação, reduzindo os custos de participação na contratação pública e agilizando o processo. Limitar a burocracia é particularmente importante na contratação pública. O acesso a contratos públicos por pequenas e médias empresas e outras empresas específicas pode ser facilitado por normas que requeiram que uma porção dos contratos públicos sejam celebrados com PME, mulheres, minorias e outros grupos vulneráveis.

A gestão de recursos humanos

As regras e procedimentos para a contratação, rotação, promoção, profissionalização e preparação de funcionários públicos também desempenham um importante papel no combate à corrupção no setor público.Por exemplo, a rotação da equipa em tarefas que sejam mais vulneráveis à corrupção pode ajudar a prevenir a formação de relações corruptas e a disrupção daquelas que já se tenham formado. A rotação pode ainda levar à redução de incentivos dos atores do setor privado para se envolverem em atos de corrupção, pois faz desvanecer garantias futuras de que os parceiros corruptos continuam numa determinada posição. O recrutamento com base no mérito é outro exemplo de sistemas de gestão de recursos humanos concebidos para desincentivar a corrupção. O artigo 7.º da UNCAC estipula que o sistema de gestão de recursos humanos se deve basear nos princípios da transparência, integridade e eficiência. Tal pressupõe a adoção de critérios objetivos para o recrutamento, retenção, promoção e reforma dos funcionários públicos, bem como a oferta de oportunidades de formação e de aprendizagem contínuas, salários adequados e equitativos e outras condições de emprego. Como todas as medidas anticorrupção, a rotação deve ser ponderada com outros fatores, como a aquisição de competências e o compromisso e dedicação com o serviço público.

Participação dos cidadãos e detentores de interesses

A prestação de contas pelo setor público requer que uma vasta quantidade de detentores de interesses – como os órgãos anticorrupção, as organizações do setor privado, os consumidores finais, a sociedade civil, a universidade, os meios de comunicação social e o público em geral – participem em processos e procedimentos do setor público e no procedimento de contratação em especial (OECD, 2016). A participação dos cidadãos é particularmente importante, nomeadamente no contexto da contratação (Heroles, 2012; Landell-Mills, 2013). Em alguns países, o reconhecimento da importância da participação dos cidadãos em procedimentos de contratação pública é levado a cabo pela própria lei. Por exemplo, leis na Mongólia e no México apelam à participação dos cidadãos nos procedimentos de contratação pública (Parafina, 2015). Tal revelou-se eficaz no México em termos de redução dos custos dos contratos públicos celebrados (De Simone e Shah, 2012). A participação dos cidadãos em esforços anticorrupção é abordada detalhadamente no Módulo 10 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção.

Governo participativo e e-government

O artigo 10.º da UNCAC incumbe os Estados de adotarem medidas necessárias para a transmissão e o acesso à informação do setor público. Neste âmbito, muitos países estabeleceram serviços de e-government que permitem a combinação de tecnologias de informação e comunicação (TIC) com o exercício das funções governamentais e dos procedimentos, com o propósito de aumentar a eficiência, transparência e participação dos cidadãos (United Nations, 2016).As TIC podem melhorar o modo como são prestados os serviços públicos, construir confiança entre os cidadãos e o Estado e contribuir para iniciativas de reforma do setor público (OECD, 2005a). As TIC são ativamente utilizadas para a promoção da integridade, particularmente na contratação pública e na gestão das finanças públicas, ao lograrem fortalecer a transparência, facilitiar o acesso a processos de contratação pública e simplificar os procedimentos administrativos (United Nations, 2016). Além disso, as TIC podem ajudar a:

reduzir a interação direta entre autoridades de contratação pública e empresas ... e facilitar a deteção de irregularidades e corrupção, como esquemas de manipulação de ofertas. A digitalização do processo de contratação fortalece os controlos internos anticorrupção e a deteção de violações da integridade, além de fornecer caminhos aos serviços de auditoria que podem facilitar as suas tarefas de investigação (OECD, 2016).

Um bom exemplo de promoção de acesso à informação é a Carta dos Dados Abertos, que foi adotada em setembro de 2019 por 71 governos nacionais e locais em todo o mundo (embora se verifique um número desproporcionalmente inferior de signatários provenientes de países não ocidentais) e por 49 organizações da sociedade civil e do setor privado. Veja aqui a lista atual de países que adotaram a Carta dos Dados Abertos. As informações governamentais partilhadas como parte da Carta dos Dados Abertos devem obedecer a seis princípios: 1) aberta por defeito; 2) oportuna; 3) compreensível; 4) acessível e utilizável; 5) comparável; e 6) interoperável (seguindo padrões internacionais de dados). Os dados devem ser produzidos para promover a governança e o comprometimento dos cidadãos, e deve promover o desenvolvimento inclusivo e a inovação (veja mais sobre os princípios da Carta dos Dados Abertos aqui). Outro exemplo de um país que adotou a Carta dos Dados Abertos é a Ucrânia, onde um sistema de dados abertos e online designado ProZorro foi lançado em 2015 para assegurar que os documentos e a informação relacionada com a contratação pública seriam facilmente acessíveis pela sociedade civil. O ProZorro teve um impacto considerável na poupança de milhões de euros ao governo e no aumento das propostas de entidades adjudicatárias de mais de 50% (Open Data Charter, 2018, p. 4). Em termos de contratação pública, a União Europeia adotou a Diretiva 2014/24/UE, que requer que sejam publicitados todos os concursos de contratação pública acima de um certo valor definido em Suplemento ao Jornal Oficial da União Europeia (vide Capítulo 3, Secção II: Publicidade e Transparência aqui e um resumo aqui). Tais requisitos legais e esforços para promover as plataformas de informação acessível são fundamentais para prevenir oportunidades de corrupção. 

Para ajudar a fornecer aos governos apoio e conhecimento técnico sobre como se devem implementar iniciativas de acesso aos dados, o Open Data for Development Programme (OD4D) oferece numerosos recursos e programas de formação. O OD4D Anti-Corruption Open Up Guide, por exemplo, demonstra como a acessibilidade a dados pode ajudar a promover e reforçar os esforços anticorrupção. Um exemplo de como o OD4D é usado pelos vários países é a base de dados de informações públicas do Georgia Opendata.ge. Este website fornece uma vasta gama de informações de todas as instituições públicas da Geórgia, incluindo as despesas já planeadas, prémios e salários de funcionários públicos, aumentando a transparência nas atividades públicas e permitindo aos cidadãos e organizações não-governamentais (ONGs) compreender e estudar melhor a despesa pública realizada pelas autoridades da Geórgia.

Gestão dos conflitos de interesses

os conflitos de interesses podem conduzir à corrupção e, portanto, devem ser divulgados e resolvidos de maneira a prevenir a sua degeneração em práticas corruptas. Em geral, os conflitos de interesses são resolvidos por meio de requisitos financeiros e de declaração do património pessoal, códigos de conduta e outras regulamentações, como a proibição de que os funcionários públicos possam trabalhar no setor privado por um determinado período de tempo após terem deixado o serviço público. O propósito de tais medidas é o de que os funcionários públicos se recusem, eles próprios, a tomar decisões quando possa existir um conflito atual ou potencial (Mattarella, 2014).

A maioria dos sistemas modernos de declaração do património e de interesses foram desenvolvidos na sequência da aprovação da UNCAC, em resposta aos requisitos estabelecidos no artigo 8.º da Convenção para prevenir os potenciais conflitos de interesses no futuro, facilitar a sua gestão e garantir que os funcionários públicos corruptos não poderão ocultar o produto de nenhuma atividade ilícita (United Nations, 2018). As medidas de acesso aos dados, discutidas na secção supra, podem ser igualmente utilizadas para facilitar os procedimentos de declaração do património dos funcionários públicos. Além disso, tornar a informação acessível em aspetos como declarações de património e de apresentação de propostas no quadro da contratação pública incentiva os jornalistas e os investigadores a examinar esses dados e esses setores da sociedade que são vulneráveis à corrupção. Para mais informação sobre o modo como as declarações de património podem ser utilizadas como um mecanismo anticorrupção, vide este estudo de Kotlyar e Pop (2016), encomendado pelo Banco Mundial).

Um ambiente que seja propício ao cumprimento da lei

No que respeita às garantias de cumprimento das normas anticorrupção e do setor público, “empurrões” e programas de formação são fundamentais para garantir a criação de um ambiente que lhe seja favorável. A “teoria dos empurrões” («nudges») foi popularizada por Thaler e Sunstein (2008), que os definiu como:

qualquer aspeto da arquitetura da escolha que altera o comportamento das pessoas de forma previsível, sem proibir nenhuma opção ou alterar significativamente os seus incentivos económicos. Para contar como um simples empurrão, a intervenção deve ser fácil de implementar e economicamente eficiente. Os empurrões não são ordens. Colocar as frutas ao nível da visão é um empurrão. Proibir a “comida de plástico” não.

A teoria dos empurrões presume que, quando confrontada com uma escolha, a pessoa apresenta maior probabilidade de tomar uma decisão-padrão, e, portanto, fornecer alternativas simples no momento da tomada de decisão pode alterar o seu comportamento, sem que seja necessário o recurso a imposições forçadas.

No contexto da corrupção, o conceito de prestação de contas ambiental leva mais longe a teoria do empurrão e utiliza “o espaço físico e o ambiente construído para capacitar as pessoas, ajudando-as a entender/afirmar os seus direitos e parar a corrupção onde é fundamental – ideias, inspiração, adesivos, murais e letreiros, interfaces de opinião, telas urbanas e intervenções arquitetónicas” (Zinnbauer, 2012). A formação no combate à corrupção e na ética são comuns no setor público e em áreas especializadas como a contratação pública – a ideia é sensibilizar os funcionários para as regras, áreas de risco e medidas a tomar quando se deparem com dilemas éticos (OECD, 2007a). A integridade e gestão éticas são discutidas no Módulo 11, e Módulo 14 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Integridade e Ética.

Monitorização e supervisão

A monitorização pode pode assumir a forma de auditorias, medidas de transparência que fornecem informações necessárias para responsabilizar o setor público e monitorização da sociedade civil. Uma pesquisa de Di Tella e Schargrodsky (2003) demonstra como as auditorias em hospitais públicos na Argentina reduzem o custo dos produtos médicos em 15%, e Bobonis, Fuertes e Schwabe (2016) revelam como as auditorias reduziram a corrupção municipal em 67% em Porto Rico. O tipo e a natureza da supervisão sobre, por exemplo, o processo de contratação pública depende de uma avaliação do risco do ambiente de contratação. As medidas de controlo podem, pois, servir-nos como mecanismos de gestão do risco na medida em que sejam “coerentes e incluam procedimentos eficazes e claros de resposta às suspeitas credíveis de violação de leis e regulamentos, além de facilitarem a comunicação às autoridades competentes sem medo de represálias” (OECD, 2016).

Prestação de contas e escrutínio (o princípio dos quatro olhos)

O princípio dos quatro olhos refere-se ao facto de algumas atividades ou decisões do setor público deverem ser aprovadas por, pelo menos, duas pessoas. O princípio dos quatro olhos é uma ferramenta para monitorizar e aumentar a responsabilidade e opera com base na ideia de que é mais difícil corromper duas pessoas do que uma (Bodenschatz e Irlenbusch, 2019), embora tal possa não ser o caso em sociedades em que a corrupção seja sistémica (Williams-Elegbe, 2018).

 
Seguinte: Conclusão
Regressar ao início