Este módulo é um recurso para professores 

 

Jurisdição

 

O Tráfico Ilícito de Migrantes, como definido no Artigo 3º  do Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, é um crime transnacional. Requer a obtenção da entrada ilegal de uma pessoa num Estado. Para uma definição do elemento da transnacionalidade, consulte por favor o Módulo 1 da Série de Módulos Universitários em Criminalidade Organizada.

Assim, para que se possa, de forma efetiva, prevenir, combater e e reprimir eficazmente o contrabando de migrantes, é fundamental que os Estados adotem abordagens jurisdicionais que abranjam comportamentos que possam ter tido lugar fora do seu território. Sem esta abordagem, os Estados podem carecer de instrumentos para trazer à justiça os indivíduos que organizam o contrabando de migrantes em águas internacionais (ver, por exemplo, a Caixa 24) ou que organizam ou dirigem estas operações a partir de  um local seguro de um país terceiro.

Em termos gerais, o conceito de jurisdição refere-se ao poder do Estado de agir de forma lícita, através do exercício de atos de caráter legislativo, executivo ou judicial. Existem vários princípios no que diz respeito à jurisdição Estatal, que refletem a independência da soberania. Por exemplo, enquanto que os Estados geralmente exercem a sua jurisdição sobre os seus territórios e cidadãos, a sua jurisdição em locais fora do seu território e sobre cidadãos de outros estados podem estar mais limitadas. A UNTOC estabelece uma série de disposições relativas à jurisdição dos Estados em relação a crimes no âmbito da Convenção e dos seus Protocolos.

O Artigo 15º da UNOTC requer que os Estados prevejam a jurisdição sobre crimes cometidos (i) dentro do seu território respetivo (princípio da territorialidade), ou (ii) a bordo de uma embarcação que arvoram a bandeira do Estado a que diz respeito, ou aeronave registada de acordo com as leis do Estado em questão, no momento da prática do crime (princípio do Estado de Bandeira). Além disso, prevê-se a implantação do princípio aut dedere aut judicare (o dever de extraditar ou proceder judicialmente). Isto significa que, a menos que a extradição seja solicitada e concedida a outro Estado, o Estado deve proceder judicialmente contra o sujeito. O objetivo deste princípio é de evitar que o agente que cometa crimes não seja punido, quer por falta de pedido de extradição, quer por recusa de extradição.

A UNTOC deixa à descrição dos Estados a adoção de jurisdição relativa a crimes cometidos (i) no estrangeiro contra um dos seus cidadãos por um cidadão estrangeiro (princípio da personalidade passiva) e (ii) no estrangeiro por um dos seus cidadãos, ou por um apátrida que no momento dos acontecimentos tinha a sua residência habitual nesse Estado (princípio da personalidade ativa). Os Estados são também livres de adotar outros fundamentos para a sua jurisdição.

Caixa 24

Modus operandi da Embarcação-Mãe

[Os] traficantes de migrantes  começaram a usar embarcações muito maiores, geralmente mobilizados várias vezes em várias operações de tráfico. Normalmente, a viagem começa numa embarcação grande, com até 75 metros de comprimento, reciclada a partir de cargueiros desativados, onde o SAI (Sistema de Identificação Automático, obrigatório em qualquer barco de grande porte) foi desligado. O efeito é tornar a embarcação eletronicamente indetetável por autoridades de busca e salvamento, de forma a ganhar tempo para os traficantes de migrantes  em caso de fuga, evitando serem detidos. Quando a embarcação de grandes dimensões (a chamada “Embarcação Mãe”) se aproxima das fronteiras Italianas, normalmente cerca de 100 milhas náuticas da costa, os migrantes são transferidos para embarcações mais pequenas e mais baratas, onde lhes é fornecido um telemóvel por satélite que pode ser usado para pedir ajuda e transmitir as coordenadas. Importa sublinhar que este novo método implica uma maior ameaça para a segurança dos migrantesna última parte da sua viagem, porque são deixados em alto mar, em embarcações sem condições e sem capacidade de chegar à costa, para que os traficantes de migrantes  possam aproveitar-se do dever legal existente de ajudar pessoas em risco no mar. Quando um pedido de ajuda é transmitido, um navio mercante, estando próximo, é obrigado pelo Direito Internacional Marítimo a proceder ao salvamento, e de seguida desembarcar os migrantes no porto de escala mais próximo.

Rede Europeia de Formação Judiciária (REFJ), Tráfico de Migrantes através do Mediterrâneo: um desafio à escala da UE (2015)
 

Jurisdição no mar

O exercício de jurisdição no mar é um assunto complexo. Apesar de não ser tratada exaustivamente, será dada uma breve explicação.

Figura 3: Jurisdição no Mar

 

A Figura 3 dispõe uma visão geral sobre as zonas marítimas.

Ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), de 1982, os Estados podem exercer a sua jurisdição nas seguintes zonas, que são medidas a partir da linha de base do mar territorial (TSB):

  • Águas interiores (todas as águas terrestres em relação à TSB);
  • Mar territorial (12 milhas náuticas a partir da TSB);
  • Zona contígua (de 12 a 24 milhas náuticas a partir da TSB);
  • Zona económica exclusiva (não mais do que 200 milhas náuticas a partir da TSB);
  • Plataforma continental; e
  • Alto mar.

O direito do Estado costeiro de exercer a sua jurisdição vai diminuindo progressivamente conforme se vai afastando da linha de base do mar territorial. Importa salientar o seguinte:

  • Na zona contígua, o Estado pode exercer os poderes necessários para (i) prevenir violações das suas leis ou regulações alfandegárias, fiscais, de imigração ou sanitárias dentro do seu território ou mar territorial; (ii) punir violações das leis anteriores e regulações cometidas dentro do seu território ou mar territorial (Artigo 33º  UNCLOS).
  • O alto mar é aberto a todos os Estados, quer estes sejam costeiros ou sem acesso ao mar (Artigo 87º UNCLOS).
  • O Estado costeiro tem o direito de perseguir um navio (para além da zona contígua) cujo Estado costeiro tenha fortes razões para acreditar ter violado as leis e regulamentos desse Estado costeiro dentro do seu território, mar territorial ou zona contígua. A perseguição deve ser iniciada quando o navio estrangeiro ou uma das suas embarcações esteja dentro de águas internacionais, mar territorial ou zona contígua do Estado perseguidor e só pode ser continuada fora do mar territorial ou zona contígua se a perseguição não tiver sido interrompida. O direito à perseguição é aplicável mutatis mutandis a violações na zona económica exclusiva ou plataforma continental (Artigo 111º UNCLOS)

O Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea estabelece um enquadramento destinado a assegurar e otimizar o exercício da aplicação da jurisdição no mar.

Caixa 25

Artigo 8º do Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea

1 - Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio que arvora o seu pavilhão ou que invoca o registo da matrícula neste Estado, sem nacionalidade, ou que apesar de arvorar um pavilhão estrangeiro ou recusar mostrar o seu pavilhão tem na verdade a nacionalidade do Estado Parte em questão, está a ser utilizado para introduzir clandestinamente migrantes por via marítima pode pedir o auxílio a outros Estados Partes para pôr termo à utilização do referido navio para esse fim. Os Estados Partes a quem foi solicitado o auxílio deverão prestá-lo na medida do possível tendo em conta os meios de que dispõem.

2 - Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio que exerce a liberdade de navegação em conformidade com o direito internacional e arvora o pavilhão ou exibe sinais de matrícula de outro Estado Parte está a ser utilizado para introduzir clandestinamente migrantes por via marítima pode notificar o Estado do pavilhão, solicitar a confirmação do registo da matrícula e, se este se confirmar, solicitar autorização a esse Estado para tomar as medidas apropriadas relativamente ao navio. O Estado do pavilhão pode, designadamente, autorizar o Estado requerente a:

a) Entrar a bordo do navio;

b) Revistar o navio; e

c) Se forem encontradas provas de que o navio está a ser utilizado para introduzir clandestinamente migrantes por via marítima, tomar as medidas que considere apropriadas relativamente ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo, nos termos em que foi autorizado pelo Estado do pavilhão.

3 - Um Estado Parte que tenha tomado qualquer medida em conformidade com o n.º 2 do presente artigo deverá informar imediatamente o Estado do pavilhão em causa sobre os resultados das referidas medidas.

4 - Um Estado Parte deverá responder imediatamente a qualquer pedido de outro Estado Parte com vista a determinar se um navio que invoca o registo da matrícula neste Estado ou arvora o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, bem como a um pedido de autorização efetuado em conformidade com o n.º 2 do presente artigo.

5 - O Estado do pavilhão pode, em conformidade com o Artigo 7º do presente Protocolo, fazer depender a sua autorização de condições a acordar com o Estado requerente, nomeadamente condições relativas à responsabilidade e ao alcance das medidas efetivas a tomar. Um Estado Parte não deverá tomar medidas adicionais sem autorização expressa do Estado do pavilhão, exceto aquelas que sejam necessárias para afastar um perigo iminente para a vida das pessoas ou as que resultam de acordos bilaterais ou multilaterais aplicáveis.

6 - Cada Estado Parte designa uma ou, se necessário, várias autoridades para receber e responder a pedidos de auxílio, de confirmação do registo de matrícula ou do direito de uma embarcação arvorar o seu pavilhão e a pedidos de autorização para tomar as medidas apropriadas. Essa designação será notificada pelo Secretário-Geral a todos os outros Estados Partes no prazo de um mês após esta designação.

7 - Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio está a ser utilizado para introduzir clandestinamente migrantes por via marítima e não tem nacionalidade ou é equiparado a um navio sem nacionalidade pode entrar a bordo e proceder à busca. Se forem encontradas provas que confirmem a suspeita, esse Estado Parte deverá tomar as medidas apropriadas em conformidade com o direito interno e internacional aplicável.

Os Artigos 7º, 8º e 9º do Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea – que lidam especificamente com tráfico de migrantes por via marítima – serão analisados em maior detalhe no Módulo 3. Contudo, dado que o Artigo 8º implica disposições relativas à jurisdição executiva, devem ser realçados os seguintes aspetos nesta fase:

  • Um Estado que tenha causa provável para acreditar que uma embarcação, que não arvore bandeira ou que se possa assemelhar-se a uma embarcação sem bandeira, esteja envolvida em tráfico de migrantes, pode abordar e revistar a embarcação. Se forem encontradas provas que sustentem as suspeitas inicias, o Estado deverá adotar medidas adequadas, consistentes com o Direito interno e internacional.

Quando a embarcação suspeita de estar envolvida em tráfico de migrantes arvore bandeira de outro Estado, o Estado interveniente deve pedir autorização ao Estado bandeira para tomar as medidas adequadas. O Estado bandeira pode autorizar o Estado que efetua o pedido a, designadamente, (i) embarcar e revistar a embarcação, (ii) se forem encontradas provas de envolvimento em tráfico de migrantes, a tomar medidas adequadas no que toca à embarcação, carga e pessoas a bordo.

 
Seguinte: Tráfico de migrantes v. migração irregular
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