Este módulo é um recurso para professores
Semelhanças, diferenças e complementaridade entre os instrumentos globais e ferramentas para sua implementação
Semelhanças e complementaridade entre os instrumentos globais
Qual é a relação entre esses instrumentos e por que diversas normas parecem ser duplicadas e sobrepor-se umas às outras? Há, de fato, diversas semelhanças e sobreposições parciais entre esses instrumentos que pediriam uma abordagem sinérgica para esses instrumentos, bem como algumas diferenças fundamentais entre eles. O UNODC discutiu em um artigo de pesquisa de 2016 que as semelhanças entre esses instrumentos começam com a similaridade de seus objetivos (UNODC, 2016). Exceto pelo Protocolo de Armas de Fogo e seu precursor, a Convenção sobre a Criminalidade Organizada, esses instrumentos não foram intencionalmente negociados ou construídos como instrumentos interconectados. Entretanto, todos eles têm objetivos amplamente similares e compatíveis: controlar diferentes categorias de comércio internacional de armas convencionais e prevenir atividades ilegais.
Os objetivos mais amplos desses instrumentos são igualmente similares – mitigar os impactos negativos do tráfico ilícito de armas convencionais na segurança nacional, regional e internacional. Por exemplo, o Protocolo de Armas de Fogo salienta “os efeitos nocivos dessas atividades [produção e tráfico ilícito de armas de fogo] na segurança de cada Estado, região e no mundo como um todo, colocando em risco o bem-estar das pessoas, seu desenvolvimento social e econômico e seu direito de viver em paz” (Preâmbulo, Protocolo de Armas de Fogo). Da mesma forma, o Programa de Ação refere-se à “grande variedade de consequências humanitárias e socioeconômicas, e apresenta uma séria ameaça à paz, reconciliação, segurança, proteção, estabilidade e desenvolvimento sustentável em níveis individual, local, nacional, regional e internacional” (Seção 1, parágrafo 2, Programa de Ação). O preâmbulo do TCA salienta que “civis, particularmente mulheres e crianças, representam a vasta maioria daqueles afetados negativamente pelo conflito armado e pela violência armada” (Preâmbulo, Tratado sobre o Comércio de Armas).
Os instrumentos claramente reforçam-se uns aos outros. Isso é evidente na forma como os instrumentos referem-se aos outros tratados afirmando obrigações ou salientando sua complementaridade. Por exemplo, o preâmbulo do Programa de Ação (PoA) reconhece que o Protocolo de Armas de Fogo “estabelece diretrizes e procedimentos que complementam e reforçam esforços para prevenir, combater e erradicar o comércio ilícito de armas pequenas e armamento leve em todos os seus aspectos”. O PoA prevê o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA) em seu compromisso pelos Estados de “encorajar negociações, onde apropriado, com o objetivo de concluir instrumentos juridicamente vinculativos direcionados à prevenção, combate e erradicação do comércio ilícito de armas pequenas e armamento leve em todos os seus aspectos, e onde eles existam para ratificá-los e implementá-los em sua totalidade” (Seção II, parágrafo 25, Programa de Ação).
O TCA, especificamente, contém uma disposição sobre a relação entre o TCA e outros acordos internacionais no Artigo 26: “A implementação deste Tratado não deve prejudicar obrigações assumidas pelos Estados-parte em relação a acordos internacionais existentes ou futuros dos quais eles fazem parte, onde essas obrigações são consistentes com este Tratado’.
O fato de o TCA mencionar especificamente outros acordos internacionais em seu preâmbulo, incluindo o Protocolo de Armas de Fogo, sugere que os Estados vejam o Protocolo de Armas de Fogo como um acordo internacional com obrigações que são consistentes com o TCA. Além disso, o TCA baseia-se nas obrigações existentes dos Estados-parte, afirmando essas obrigações e reafirmando-as no âmbito de uma estrutura legal diferente. O Artigo 6(2) proíbe transferências que violam uma “obrigação internacional relevante no âmbito de acordos internacionais dos quais faz parte” um Estado-parte. O Artigo 6(2) também faz uma referência específica aos tratados internacionais relativos à autorização e “transferência ou tráfico ilícito de armas convencionais” e itens relacionados. Isso inclui o Protocolo de Armas de Fogo. Nota-se que o Artigo 6(2) não cria uma nova obrigação substancial já que se refere a obrigações que um Estado-parte já possui. Mas a significância de referenciar essas outras obrigações é de que o TCA sujeita essas obrigações aos seus mecanismos reguladores exigidos para “transferências”. Por exemplo, será exigido de um Estado-parte, no âmbito do Artigo 13(1) do TCA, que reporte como implementa o Artigo 6(2) em suas leis nacionais.
No âmbito do PoA, no nível nacional, o Estado compromete-se a “colocar em prática, onde não exista, leis, regulações e procedimentos adequados para o exercício do controle efetivo sobre a produção de armas pequenas e armamento leve dentro de suas áreas de jurisdição e sobre a exportação, importação, transporte ou transferência de tais armas, para prevenir a produção e tráfico ilícito de armas pequenas e armamento leve, ou seu desvio para receptores não-autorizados” (Seção II, parágrafo 2, Programa de Ação). O PoA é uma estrutura política e em grande parte não fornece os detalhes sobre o que são “leis, regulações e procedimentos administrativos adequados”. Entretanto, o preâmbulo do PoA menciona especificamente o Protocolo de Armas de Fogo; na verdade, é o único tratado específico para armas pequenas que é importante salientar. Quando o PoA fala de ter “leis adequadas” em vigor refere-se, pelo menos em parte, à estrutura fornecida pelo Protocolo de Armas de Fogo (UNODC, 2016).
Diferenças entre instrumentos globais
Os instrumentos globais sobre armas de fogo e outras armas convencionais também expõem algumas diferenças, que podem ser identificadas no escopo de suas aplicações, no tipo de atividades, na abordagem quanto à marcação, regulamentação para desativação, conservação de registro e transbordo.
O TCA tem o escopo mais amplo de aplicação dentre os instrumentos globais e inclui sete categorias de armas, além da categoria de armas pequenas e armamento leve (Artigo 2(1)), suas peças e componentes e munições são definidas nos artigos 3 e 4 em relação a essas oito categorias. Munição e peças e componentes também são abrangidos pelo Tratado à medida em que o primeiro pode ser disparado, lançado ou entregue pelas categorias de armas, e os segundos estão em uma forma que fornece a capacidade de montar as armas convencionais. Por outro lado, o Protocolo de Armas de Fogo aplica-se apenas a armas de fogo, suas peças e componentes e munições (Artigo 2). Ambos o PoA e o IIR incluem em seus escopos apenas armas pequenas e armamento leve, sem referência às suas munições, peças ou componentes. O debate sobre as definições de “armas de fogo” e “armas pequenas e armamento leve” é descrito no Módulo 1 sobre a Introdução às Armas de Fogo.
Além das diferenças e das sobreposições dos tipos de armas convencionais abrangidas por cada instrumento discutido acima, há também diferenças em relação aos tipos de atividades que são reguladas por cada um deles. O foco em diferentes atividades de cada instrumento é conectado à variedade de naturezas e contextos de cada um. O Protocolo de Armas de Fogo, como uma ferramenta de prevenção da criminalidade, aborda apenas algumas atividades que podem ser relacionadas às ofensas criminais específicas incluídas no Protocolo. O Tratado sobre o Comércio de Armas regulamenta o comércio internacional de armas convencionais e é, portanto, focado em atividades relacionadas ao comércio e possível desvio para o comércio ilegal. Como resultado, o Tratado sobre o Comércio de Armas não foca apenas nas medidas de execução ou em atividades que não são relacionadas ao comércio (por exemplo, posse). O Programa de Ação procura abordar uma grande variedade de atividades para prevenir, combater e erradicar o comércio ilícito de armas pequenas e armamento leve. O propósito do IIR é identificar e rastrear armas pequenas e armamento leve ilegais (Seção 1, parágrafo 1). Diante disso, seu foco primário são as atividades de marcação e rastreio. Conservação de registro, resposta às solicitações de rastreio e cooperações internacionais são as atividades principais do IIR. As atividades regulamentadas no escopo de diferentes instrumentos estão resumidas na Tabela 6 abaixo.
Protocolo de Armas de Fogo |
Tratado sobre o Comércio de Armas |
Programa de Ação |
Instrumento Internacional de Rastreio |
|
|
|
|
Tabela 6: Tipos de atividades regulamentadas no âmbito dos instrumentos globais, UNODC, 2016
Os instrumentos também mostram diferentes abordagens para a implementação das exigências de marcação. O propósito da marcação é fornecer um conjunto único de marcas a uma arma de fogo – ou outras armas pequenas – que as identifiquem, e forma a base sobre a qual os registros são mantidos e o rastreio pode ser realizado. O Protocolo de Armas de Fogo, o IIR e o PoA contêm normas sobre o momento em que a marcação deve ser aplicada, enquanto o TCA não leva esse assunto em consideração.
O IIR e o Protocolo de Armas de Fogo especificam que a marcação deve ser aplicada no momento de produção, importação e transferência de estoques governamentais para o uso civil permanente. Por conta da diferença no escopo dos dois instrumentos, a referência do IIR para marcação inclui armamento leve, enquanto o Protocolo de Armas de Fogo é limitado a apenas armas de fogo. O Programa de Ação foca na marcação no momento da produção. Deve ser salientado que nenhum dos instrumentos internacionais que estabelecem exigências para marcação aplicam-nos às peças e componentes e munições.
De um ponto de vista comparativo, é evidente que as durações da conservação de registro são reguladas diferentemente, com o IIR prevendo o período mínimo mais longo de 30 anos, enquanto o Protocolo de Armas de Fogo e o TCA estabelecem um período mínimo de dez anos. Por outro lado, o PoA não fornece um número explícito e especifica que a duração da conservação de registro deve ser tão longa quanto possível.
Finalmente, as regulações de desativação e transbordo também destacam diferenças entre os instrumentos globais. Desativação é o processo que torna uma arma de fogo permanentemente inoperável. Muitos Estados permitem a posse (e exibição) de armas de fogo desativadas por colecionadores, museus, clubes de rifle, etc. Tais armas de fogo desativadas são geralmente sujeitas a menos controle. Uma vez que um Estado determinou a circunstância onde é legal possuir armas de fogo desativadas, deve regular a maneira de desativação. O único instrumento que aborda a desativação é o Protocolo de Armas de Fogo. Da mesma forma, o transbordo é especificamente regulamentado apenas no TCA. De acordo com a Convenção de Kyoto da Organização Mundial Alfandegária, “transbordo” é definido como um procedimento alfandegário no qual bens são transferidos, sob o controle alfandegário, dos meios do transporte de importação aos meios do transporte de exportação, dentro da área de uma estância aduaneira, que é a estância de ambas, importação e exportação (Artigo 2, Anexo E).
Por fim, esses instrumentos abordam a proliferação e o mal uso de armas de fogo e outras armas convencionais, seu desvio, produção ilícita e tráfico de diferentes perspectivas. Isso resultou em alguns instrumentos enfatizando elementos em particular mais do que outros. Por exemplo, o Protocolo de Armas de Fogo toma uma abordagem de prevenção do crime ao estabelecer várias violações relacionadas à produção, tráfico e marcação de armas de fogo. A Convenção sobre Criminalidade Organizada fornece uma variedade significativa de mecanismos de execução para permitir que seus Estados-parte abordem crimes “graves”, incluindo violações do Protocolo de Armas de Fogo. O TCA, ao enfatizar as estruturas reguladoras, fornece detalhes sobre o conteúdo dos sistemas de controle nacional que permitem a regulação efetiva de transferências internacionais. É a essas diferentes perspectivas que os Estados devem recorrer ao considerar suas leis nacionais. Esses diferentes instrumentos são importantes em seu potencial de complementar uns aos outros e se tornarem “alicerces” na elaboração de um quadro nacional abrangente, o que é discutido no Módulo 6 sobre Regulações Nacionais de Armas de Fogo.
click on the image to open the full table
Tabela 7: Sumário comparativo de instrumentos internacionais (adotado da “Análise Comparativa de Instrumentos Globais sobre Armas de Fogo e outras Armas Convencionais: Sinergias para Implementação”, UNODC, 2016)
Seguinte: Ferramentas para apoiar a implementação de instrumentos globais sobre armas de fogo e armas convencionais
Regressar ao início