Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico dois: Práticas Restaurativas

 

A Justiça Restaurativa é um processo flexível e culturalmente adaptável, no qual as partes dialogam de modo construtivo sobre como promover a mudança, não sendo por isso um programa fixo ou padronizado. Flexibilidade e capacidade de resposta estão entre os objetivos dos processos restaurativos, conforme sublinhado nos Princípios Básicos (2002, Preâmbulo e Princípio Básico 9).

Desde a sua criação, vários modelos práticos de Justiça Restaurativa tornaram-se proeminentes. O tipo e o conteúdo dos modelos variam de região para região e entre jurisdições, refletindo o seu contexto jurídico, sociopolítico e cultural.

Os programas de Justiça Restaurativa podem ser categorizados de várias formas (cf., por exemplo, Zehr et al., 2015, sobre vários modelos). Alguns falam de um potencial restaurativo contínuo, variando de “totalmente restaurativos” (fully restorative) a “parcialmente restaurativos” (partly restorative). Tal depende de várias características, como o nível de participação no processo restaurativo das pessoas afetadas pela prática do crime, o grau de assunção de responsabilidade estimulado pelo processo restaurativo ou os resultados alcançados pelo mesmo.

Os modelos de Justiça Restaurativa que se seguem são essencialmente aplicáveis a crianças e adultos e podem ser identificados no contexto da justiça penal:

 

Mediação vítima-ofensor

A mediação, também conhecida como diálogo vítima-ofensor, conferência vítima-ofensor ou programa de reconciliação vítima-ofensor, surgiu nos anos 70 e é um dos modelos de Justiça Restaurativa mais amplamente utilizados no sistema de justiça penal (cf. mediação vítima-ofensor na Europa, Dünkel et al., 2015). Apesar de a mediação vítima-ofensor ser assim designada, é importante notar que esta prática restaurativa difere da mediação noutras áreas, como a mediação civil e comercial.

A mediação vítima-ofensor consiste em um encontro entre a vítima e o ofensor, dirigida por um terceiro imparcial com formação especifica para discutir o impacto da infração e procurar uma forma de resolver o conflito. Um processo de mediação vítima-ofensor começa com sessões individuais entre o(os) facilitador/mediador(es) com a vítima, e com o ofensor, de modo separado, para assim poder avaliar a adequação do caso ao processo de mediação e a assegurar que o ofensor esteja disposto a assumir a responsabilidade pelo dano. A estes encontros preparatórios ([NT]: Que, no contexto da prática restaurativa mediação, é denominado em alguns sistemas jurídicos de “pré-mediação”), seguem-se sessões conjuntas, que contam já com a participação simultânea da vítima e do ofensor, durante as quais ambos podem expressar os seus sentimentos, contar as suas histórias e falar sobre o dano ocasionado pelo crime. Tanto a vítima como o ofensor podem convidar apoiantes para o diálogo restaurativo. Muitas vezes, os acordos incluem pedidos de desculpa, indemnização pelos danos materiais ou imateriais sofridos, restituição e prestação de serviços diretamente à vítima. Muitas vezes também, há um mecanismo de acompanhamento para monitorizar o cumprimento dos acordos por parte do ofensor. A mediação vítima-ofensor inclui sobretudo encontros pessoais, mas também são possíveis reuniões indiretas, geralmente a pedido da vítima.  

 

Conferências

Inicialmente, as conferências eram sobretudo utilizadas no contexto da justiça juvenil, mas são agora largamente aplicadas também aos adultos. As conferências são um processo que envolve um círculo mais amplo de participantes do que apenas o ofensor e a vítima, envolvendo nomeadamente familiares, amigos e representantes da comunidade. Para além disso, os objetivos das conferências podem ser mais abrangentes. Convém ainda notar que as conferências comungam dos mesmos objetivos da mediação vítima-ofensor, visando ainda: permitir ao ofensor reconhecer o impacto que a sua ofensa teve, não só na vítima e na família da vítima, mas também na sua própria família e amigos; e proporcionar a todos os envolvidos a oportunidade de restabelecer relações.

Primeiramente desenvolvida em 1989 na Nova Zelândia, as conferências de grupo familiares são utilizadas nos domínios da justiça juvenil e de proteção à criança. Relativamente à justiça juvenil, este processo inclui o jovem ofensor e a família, a polícia, a vítima e pessoas significativas. As conferências permitem que a família do jovem, bem como a vítima e os seus apoiantes, sejam ativamente envolvidos no processo de tomada de decisão.

Exemplo: Conferência de Grupo Familiares de Aotearoa, Nova Zelândia

Em 1989, a Nova Zelândia aprovou a Lei das Crianças, Jovens e Suas Famílias (a Lei foi subsequentemente renomeada como Lei Oranga Tamariki, 1989; ou Lei do Bem-Estar das Crianças e dos Jovens, 1989). A legislação ditou uma revolução na forma como o Estado aborda as necessidades dos jovens em risco, especialmente nas áreas da justiça, cuidado e proteção dos mesmos. A insatisfação com o modo como o governo se relacionou com os Māori (o povo indígena de Aotearoa) e sua sobre representação no sistema de justiça e bem-estar juvenil, levou a uma revisão da legislação no âmbito da justiça juvenil (Kingiet al., 2008). A nova lei procurou traçar uma nova direção na política de justiça juvenil, com base em alguns princípios orientadores, concretamente:

  • Quaisquer decisões relativas à criança devem contar com o envolvimento e acordo da família alargada ou whānau.
  • Os direitos e interesses da criança devem ser o foco fundamental.
  • As crianças devem ter uma palavra a dizer sobre a forma como o seu crime é tratado.
  • Caso optem por participar, as vítimas devem ter um lugar no processo de resolução do conflito.
  • A imposição de sanções penais deve ser perspetivada como secundária num processo que reúna, na conferência de grupo familiar, todas as pessoas afetadas e que busque soluções através do diálogo.

A nova abordagem distingue claramente entre necessidades de justiça e bem-estar. Ao abordar as necessidades de justiça das crianças, deve ser dada preferência a práticas colaborativas, centradas em soluções que abordem as causas profundas do comportamento.

O mecanismo elegido para evitar o encaminhamento de crianças a tribunais ou sistemas de custódia, sem deixar de responsabilizá-las pelos crimes cometidos, foi a Conferência do Grupo Familiar (CGF). Esta conferência refere-se a uma reunião de membros da família, incluindo jovens, juntamente com profissionais da justiça e da assistência social, que está encarregada de elaborar recomendações para abordar as necessidades da criança de uma forma reabilitativa. A reunião também considera as necessidades das vítimas, que são convidadas a participar na conferência, embora a intenção original por detrás desta medida fosse dissipar quaisquer preocupações que o público pudesse ter sobre a possibilidade de o processo se tornar demasiado brando para com o ofensor. A CGF é convocada por um coordenador de CGF, que tem um papel estatutário independente no processo. Com efeito, através deste mecanismo, o Estado devolve poder decisório à comunidade próxima do ofensor.

O modelo das CGF utilizou elementos da tradição Māori, particularmente o seu foco no papel da família alargada. No entanto, não foi especificamente concebido pelo povo Māori, nem pretendeu recuperar processos tradicionais. Ao invés, este modelo forneceu um veículo legal para o envolvimento do povo Māori na resposta às necessidades das suas crianças. Os princípios fundamentais do processo das CGF incluem: abordar as consequências nocivas do crime; oferecer às vítimas uma oportunidade de se envolverem no processo de justiça; reconhecer o papel da comunidade alargada na resolução do caso; o uso de decisões baseadas em consenso; e o objetivo de reintegrar os ofensores a nível local. (Kingi et al., 2008).

 
Figura 1: Etapas do processo de conferências

 

Círculos Restaurativos

Os Círculos Restaurativos envolvem um leque mais vasto de participantes e são guiados por valores como respeito, honestidade, confiança e igualdade (para uma visão geral dos processos de círculo, cf. Pranis, 2005; para uma visão geral comparativa, cf. Zinsstaget al., 2011). Os círculos são facilitados por um ou dois facilitadores com formação específica (circle keepers). A participação nos círculos acontece mediante um acordo entre os participantes, quanto aos valores e normas que devem informar o processo, e é utilizado um objeto de comunicação (talking piece), objeto que muitas vezes é significativo para os participantes ou para o facilitador e que é passado no círculo de pessoa para pessoa, de modo que cada participante possa falar sem ser interrompido.

O formato de círculo simboliza a igualdade dos participantes, e o objeto de comunicação permite que todos tenham o mesmo direito a falar sem interrupções. Os círculos são processos altamente eficazes para lidar com desequilíbrios de poder e alcançar resultados restaurativos.

Os círculos podem ser usados numa variedade de contextos, dentro ou fora do sistema de justiça penal. No âmbito penal, são usados para desenvolver um plano para abordar o crime e as suas causas. Os círculos restaurativos podem envolver vítimas, ofensores, os apoiantes de um e de outro, membros da comunidade e profissionais da área da justiça.

Os círculos restaurativos, conhecidos sobretudo como círculos da paz (peacemaking circles), de cura (healing circles), ou círculos de sentença (sentencing circles), foram desenvolvidos no Canadá e mais tarde nos Estados Unidos, para disponibilizar processos alternativos aos processos judiciais, reduzindo o número de condenados indígenas nas prisões daqueles países. Baseando-se em processos restaurativos usados pelas comunidades aborígenes ou nativas Americanas, os círculos viabilizam o reforço do poder da comunidade e o envolvimento na tomada de decisões. Os Quatro Círculos de hollow water, em Manitoba, Canadá, representam a utilização de círculos de cura como resposta coletiva aos danos experimentados durante muito tempo em uma comunidade.

Na Austrália, os círculos de sentença são utilizados em alguns tribunais indígenas, que foram criados para disponibilizar alternativas aos tribunais penais tradicionais que sejam culturalmente ajustadas e que envolvam as comunidades indígenas no processo de tomada de decisão. Como os círculos se concentram primacialmente na reabilitação dos ofensores, não podem ser considerados como totalmente restaurativos (fully restorative), mas incluem, ainda assim, elementos restaurativos.

Figura 2: Processos de círculos

 

Círculos na Comunidade [NT]: Também ditos círculos comunitários, expressão mais comum no Brasil.

Os círculos na comunidade são usados para responsabilizar diretamente jovens ofensores ou adultos que tenham praticado crimes de pequena gravidade perante um grupo de representantes comunitários ou tribais. Estes processos visam proporcionar ao ofensor a oportunidade de assumir a responsabilidade de uma forma construtiva e responder aos danos e às necessidades da vítima e da comunidade. Os círculos comunitários decidem sobre a sanção adequada que permita ao ofensor reparar os danos e devolver algo à comunidade. É um processo que visa resultados reparadores, baseado numa forte participação da comunidade na tomada de decisões.

 

Programas em que a vítima é substituída por um representante

Nos casos em que as vítimas não desejam participar diretamente no processo restaurativo, o que pode ocorrer por vários motivos, os programas de substituição de vítimas (victim-surrogate programmes) proporcionam a oportunidade de a vítima ser substituída por um representante. As vítimas “substitutas” agem em nome da vítima para retratar as suas necessidades e para trazer a perspetiva da vítima para o processo restaurativo. 

Outros tipos de programas de substituição são frequentemente utilizados em estabelecimentos prisionais ou de tratamento, por exemplo, programas de empatia e de sensibilização em relação às vítimas. Aqui, os ofensores encontram-se com vítimas de outros crimes para obterem uma maior compreensão sobre os tipos de dano que causaram às suas vítimas e para processarem a sua experiência em conjunto com outros ofensores. Um projeto bem conhecido é o Sycamore Tree Project, desenvolvido pela Prison Fellowship International, que é um programa desenvolvido em ambiente prisional que pretende reunir vítimas e ofensores de crimes similares.

Sycamore Tree Project®  

O Sycamore Tree Project® é um programa de cinco a oito semanas, com funcionamento em prisões em mais de trinta países do mundo, incluindo a Bolívia, Nigéria, Colômbia, Senegal, Ucrânia, EUA, Fiji, Quirguistão, Austrália, Holanda e a Alemanha (Centro de Justiça e Reconciliação, sem data). O programa, com base nos princípios da Justiça Restaurativa, dá aos ofensores a oportunidade de se encontrarem com vítimas de crimes similares para partilharem experiências e compreenderem o impacto do crime. As reuniões presenciais encorajam uma compreensão mais profunda sobre os efeitos do crime e abrem caminho para um diálogo sobre responsabilidade, restauração, reparação e cura. 

"O Sycamore Tree Project® (STP) realmente dá que pensar. Não é como qualquer outro curso que eu já fiz. Dá que pensar sobre os sentimentos. Sobre o que está “cá dentro”. Muda o que se sente sobre as vítimas. Eu fiz o ETS [Enhanced Thinking Skills] e isso é fácil. Você sabe todas as respostas antes de lá entrar. Isso não muda nada. O STP é diferente porque é sobre o que está aqui". – Ofensor de Inglaterra e País de Gales (Centre for Justice and Reconciliation, sem data).

 

Comissões de Verdade e Reconciliação (CVR)

As Comissões de Verdade e Reconciliação (CVR) têm sido utilizadas em vários países para lidar com as consequências de crimes praticados em larga escala, relacionados, por exemplo, com a violência política, abusos de direitos humanos sancionados pelo Estado e o legado da exploração colonial e da escravidão. Os exemplos incluem: a Comissão de Verdade e Reconciliação pós-apartheid na África do Sul (1995-2002); a Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação, em Timor-Leste (2002-2005); a Comissão de Verdade do Ruanda, que teve início em 1999 e se tornou permanente em 2002; A Comissão da Verdade e Reconciliação no Perú (2001-2003); e uma série de Comissões de Verdade nos Estados Unidos que procuraram abordar crimes e injustiças de motivação racial (para uma base de dados global de CVR ver o website do Instituto da Paz dos Estados Unidos).

Embora o objetivo para cada CVR esteja relacionado com as especificidades dos abusos ocorridos em cada contexto ou país, geralmente as CVR envolvem pesquisas e relatórios sobre os respetivos abusos, e oferecem um fórum para que as vítimas, as suas famílias e os ofensores compartilhem os seus relatos pessoais. Há uma considerável investigação sobre a questão de saber se os princípios de Justiça Restaurativa surgem como complementares e se estão refletidos nas respetivas CVR nacionais (cf., por exemplo, Ame e Alidu (2010) para uma análise da Comissão de Reconciliação Nacional do Gana; Gade, 2013, para uma discussão sobre Justiça Restaurativa e a Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul; e Graybill, 2017, para um estudo sobre as dimensões de Justiça Restaurativa da CVR na Serra Leoa). A investigação demonstra que, embora a Justiça Restaurativa e as CVR busquem resultados reparadores – muitas vezes com base em princípios e práticas relacionais que facilitam a partilha sobre o mal que foi praticado, sobre os danos ocasionados e sobre a importância da cura – o grau de complexidade que as CVR encerram na sua aplicação revela que elas se diferenciam do modo como a Justiça Restaurativa é utilizada no âmbito da justiça penal, tanto nos planos teórico como prático.

 

A utilização da Justiça Restaurativa no contexto penal

Existe uma variação considerável na implementação dos processos de Justiça Restaurativa em todo o mundo. Estes podem ser diferenciados através da análise dos vários papéis que a Justiça Restaurativa desempenha no contexto do sistema de justiça penal. Os processos de Justiça Restaurativa podem ser integrados nos sistemas de justiça, podem consistir em programas de diversão ou ser utilizados fora do sistema de justiça (cf. Manual de Programas de Justiça Restaurativa (UNODC, 2006)).

Existem outras diferenças na forma como os serviços de Justiça Restaurativa são administrados (por exemplo, serviços baseados na comunidade, programas baseados na polícia, programas baseados no tribunal), e no modo como os encontros restaurativos são facilitados, por profissionais ou por voluntários treinados.

 

Aplicação da Justiça Restaurativa em todas as fases do processo penal

Conforme enfatizado nos Princípios Básicos, os programas de Justiça Restaurativa podem ser utilizados em qualquer fase do sistema de justiça penal (2002, Princípio Básico 6). Isto inclui as fases iniciais do processo que podem ser dirigidas pela polícia, processamento (acusação), Julgamento(tribunal) e a fase pós-sentença (execução).

Nesse sentido, várias jurisdições nacionais e outras a nível regional encorajam o uso da Justiça Restaurativa em todas as fases do processo penal. Por exemplo, na Alemanha, o Código de Processo Penal (1987, § 155a) exige que os juízes e o Ministério Público considerem a mediação vítima-ofensor (chamadaTäter-Opfer-Ausgleich), em todas as fases do processo penal e, em casos apropriados, trabalhem a possibilidade da sua utilização. Além disso, prevê que, nos casos apropriados, o agente seja informado da possibilidade de mediação vítima-ofensor na sua primeira audição (Código de Processo Penal alemão, 1987, § 136). O esforço do autor do crime para conseguir a reconciliação com a vítima tem de ser considerado para efeitos de decisão judicial.

Na África do Sul, a Lei da Justiça da Criança (2008) abraça fortemente a noção de Justiça Restaurativa e prevê uma série de opções quanto às formas de diversão e quanto à sentença, incluindo conferências de grupo familiar e mediação vítima-ofensor. Tal como estabelecido no preâmbulo, a Lei visa "expandir e consolidar os princípios da Justiça Restaurativa no sistema de justiça penal para crianças que estão em conflito com a lei..."(South Africa Child Justice Act, 2008, Preâmbulo). Para uma visão geral da Justiça Restaurativa nas fases do processo de justiça criminal na África do Sul, cf. Skelton e Bartley, 2008.

Em muitos países, a Justiça Restaurativa é frequentemente aplicada na fase anterior ao julgamento, como uma forma de diversão processual, sobretudo nos casos que envolvem crianças. É isto o que se sucede, por exemplo, em vários países africanos, incluindo o Uganda, o Sudão do Sul e o Reino do Lesoto, que "utilizam medidas de diversão para a justiça juvenil que envolvem a resolução de conflitos de direito costumeiro" (Kilekamajenga, 2018, p. 21). No Uganda, por exemplo, os tribunais de aldeia (village courts) facilitam "a reconciliação, compensação, restituição e outros recursos restaurativos para as partes", enquanto no Reino do Lesoto, os processos restaurativos ao nível das bases incluem "comités de justiça infantil" (Kilekamajenga, 2018, p. 21). Embora a prática restaurativa, em ambos os países, seja vista como uma proteção dos direitos das crianças, é de notar que as abordagens restaurativas raramente são disponibilizadas a criminosos adultos no Uganda, no Sudão do Sul ou no Reino do Lesoto (Kilekamajenga, 2018, p. 21). Embora haja um conhecimento limitado sobre o uso de processos restaurativos nos sistemas de justiça criminal africanos (Robins, 2009, p. 69), vários estudiosos exploraram formas de desenvolver as disposições legais existentes e as práticas costumeiras para promover o uso da Justiça Restaurativa em matéria penal no Uganda (Robins, 2009) e na Tanzânia (Kilekamajenga, 2018).

Exemplo de tribunais Ward na Tanzânia

"A Tanzânia tem uma longa história de reconciliação através dos ward tribunals" (Kilekamajenga, 2018, p. 22). Os tribunais funcionam a nível comunitário e incluem quatro a oito membros eleitos para realizar a mediação, no interesse do restabelecimento da harmonia. Todas as partes interessadas, e suas famílias, podem participar e juntar provas. Os mecanismos de responsabilização incluem, por exemplo, a "compensação, restituição, pedido de desculpa, multas, (…) e serviço comunitário" (Kilekamajenga, 2018, p. 22). São necessários recursos adicionais e treino especializado, para garantir que os tribunais ward funcionem como mecanismos eficazes de Justiça Restaurativa (Kilekamajenga, 2018).

Um estudo recente sobre os sistemas de justiça juvenil nos Estados membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ANSA), revelou consideráveis discrepâncias na região no que diz respeito à utilização de abordagens de Justiça Restaurativa nos casos em que as crianças são acusadas, alegadas ou reconhecidas como tendo violado a lei (Instituto Raoul Wallenberg, 2015, p. 10). Tal como já identificado em relação ao Reino do Lesoto e ao Uganda, as crianças em alguns países da ANSA podem ser encaminhadas para mediação na sua própria aldeia (Instituto Raoul Wallenberg, 2015, p. 10). Esta é uma resposta possível quando uma criança entra em conflito com a lei no Laos, por exemplo (Phochanthilath, 2013, p. 69), e também no Vietname (Ngoc Binh, 2013, p. 189). Diversamente, os processos de Justiça Restaurativa são regidos por controlos estatutários e institucionais em vários países integrantes da ASEAN (Instituto Raoul Wallenberg, 2015, p. 10). Por exemplo, em 1997, um Tribunal de Singapura adotou a Justiça Restaurativa como abordagem orientadora para crianças em conflito com a lei (Chan, 2013). As crianças podem ser encaminhadas para uma conferência de grupo familiar nos casos em que o Tribunal decida que seria "no melhor interesse da criança que delinquiu" (Chan, 2013, p. 8). Na prática, as crianças que são bem apoiadas pela família, e que cometeram crimes menos graves, são mais suscetíveis de serem encaminhadas para uma conferência de grupo familiar. É de salientar que, em Singapura, a conferência de grupo familiar não é uma forma de diversão, uma vez que o encaminhamento depende de uma confissão ou declaração de culpa. Não obstante, o esquema tem demonstrado efeitos positivos, como se segue: 

A principal razão dada pelos jovens ofensores para pensarem que a conferência familiar é útil, decorre do facto de, por esta forma, tomarem consciência do sofrimento que causaram aos seus pais. Isto é notável, considerando que um dos objetivos da Justiça Restaurativa é enfatizar ao ofensor a dimensão humana do seu crime e que outros podem ser afetados pela conduta do ofensor. (Chan, 2013, p. 10).

Exemplo: Mediação vítima-ofensor na Áustria

Na Áustria, a mediação vítima-ofensor (denominada Tatausgleich) pode ser utilizada como forma de diversão processual antes ou durante a sua presença no tribunal para infrações com uma pena máxima de cinco anos. Entre os pré-requisitos para a diversão processual inclui-se que os factos e circunstâncias do processo tenham sido devidamente esclarecidos, que a infração não seja punível com pena de prisão superior a cinco anos e que o agente esteja disposto a assumir a responsabilidade e a tomar medidas para compensar os danos.

O Ministério Público é o principal guardião neste processo, exercendo o seu poder para encaminhar casos para processos restaurativos. Os processos são remetidos para o provedor central de mediação vítima-ofensor, NEUSTART, um organismo autónomo do Ministério da Justiça, que oferece mais medidas de serviço comunitário. Nos casos em que tenha sido alcançado e cumprido um acordo, a acusação será normalmente retirada. Se as acusações tiverem sido apresentadas perante o tribunal, o juiz pode decidir encerrar o processo após o cumprimento do acordo. Os mediadores participam num treino abrangente de quatro anos, que é ministrado por um provedor central (cf. Gombots e Pelikan, 2015).

O Conselho da Europa liderou o desenvolvimento de uma série de recomendações e documentos relativos à Justiça Restaurativa na fase pós-sentença (por exemplo, a Recomendação do Conselho da Europa (2018), tais como as regras europeias para jovens ofensores sujeitos a sanções e medidas (2008) e as regras prisionais europeias (2006)). A importância da Justiça Restaurativa nos últimos estágios do processo de justiça criminal também foi articulada, a nível internacional, na Declaração de Doha (Artigo 5º(j)). Contudo, na prática, ainda há espaço para melhorar a aplicação de práticas restaurativas no contexto da prisão e da liberdade condicional. A Justiça Restaurativa nas prisões oferece um potencial promissor para melhorar a reintegração dos ofensores na comunidade, prevenir a reincidência, auxiliar na criação de laços sociais importantes e proporcionar às vítimas uma sensação de “pôr termo à vitimização ocasionada pela prática do crime” (clousure) (cf., por exemplo, Van Ness, 2007). A investigação levada a cabo por programas em contexto prisional também revelou melhorias significativas na empatia dos presos para com as vítimas e mudanças de atitude em relação ao comportamento ofensivo (Feasey et al., 2009; Crocker, 2015). 

Um exemplo que merece destaque é a implementação de práticas restaurativas nas prisões da Bélgica. O Programa "Mediação para Reparação", que se centra na infração grave, incluindo na violação, roubo e homicídio, está disponível em todas as prisões belgas. Pode ser iniciado a pedido do recluso, da vítima ou da família da vítima. Além disso, na Bélgica, foram tomadas iniciativas para implementar um modelo de base restaurativa no sistema prisional, incluindo a formação do pessoal prisional e o desenvolvimento de programas específicos nas prisões (Aertsen, 2015).

 

Aplicação da Justiça Restaurativa à Criminalidade Grave

Nos últimos anos, tem havido uma tendência crescente para o uso da Justiça Restaurativa em casos que envolvem crimes graves, incluindo, entre outros, homicídios, agressões violentas, agressões sexuais ou violência de género. Tal como assinalado na Recomendação do Conselho da Europa (2018), "A Justiça Restaurativa deve ser um serviço acessível a todos. O tipo, gravidade ou localização geográfica do crime não deve, por si só, e na ausência de outras considerações, impedir que a Justiça Restaurativa seja oferecida às vítimas e ao ofensor" (Recomendação do Conselho da Europa (2018), Princípio Básico 18).

Em muitos países, o uso da Justiça Restaurativa tende ainda a ser limitado a jovens adultos e a crianças em conflito com a lei, a ofensores primários e à criminalidade leve. No entanto, há cada vez mais evidências de que os processos restaurativos podem ser bastante eficazes em casos que envolvem crimes graves ou ofensores com enraizados padrões de criminalidade grave. A pesquisa mostrou que a Justiça Restaurativa teve maior impacto na redução da reincidência com ofensores com maior probabilidade de reincidência (Sherman et al., 2015).

A implementação de programas de Justiça Restaurativa em situações que envolvem crimes graves e violentos tem tido lugar com muita cautela. Há muitas razões para isso, incluindo: (i) preocupações com a segurança da vítima; (ii) o facto de existir, frequentemente, um desequilíbrio de poder entre o ofensor e a vítima; (iii) o impacto traumático da infração sobre a vítima, bem como a preocupação de que o próprio processo restaurativo possa agravar o trauma; (iv) o medo da revitimização; (v) a necessidade de avaliar as vítimas e garantir que estão psicologicamente prontas para participar num processo restaurativo; e (vi) a falta de serviços de assistência à vítima para apoio no acompanhamento pós-processo (follow up). Estas preocupações estão geralmente presentes nos casos que envolvem criminalidade grave, mas podem aplicar-se de forma diferente consoante o tipo de crime. As salvaguardas legais e processuais são, portanto, de fundamental importância, para assegurar que os processos de Justiça Restaurativa não sejam prejudiciais para os participantes, especialmente para as vítimas.

 

Justiça Restaurativa e violência de género

Razões semelhantes são chamadas à colação quando a Justiça Restaurativa é aplicada a casos de violência de género. Esta área continua a ser objeto de grande debate, devido a aspetos relacionados com desequilíbrios de poder entre a vítima sobrevivente e o agressor, ao medo de potencial manipulação do processo pelo agressor, à possível pressão sobre a vítima para participar no processo restaurativo, à falta de facilitadores/mediadores com formação específica e com os inerentes riscos de revitimização (cf., por exemplo, Daly e Stubbs, 2006; Drost et al., 2015).

Consequentemente, os pré-requisitos relacionados com a segurança da vítima, voluntariedade e consentimento informado são considerados fundamentais para o acesso tanto à Justiça Restaurativa como a processos de resolução alternativa de litígios (RAL). Vários documentos internacionais referem-se ao uso da Justiça Restaurativa no contexto da violência de género, estabelecendo condições para uma aplicação segura.

O Comité sobre Eliminação da Discriminação contra as Mulheres recomendou que os casos de violência contra as mulheres, incluindo a violência doméstica, não sejam passíveis de submissão a nenhuma forma de processo de resolução alternativa de litígios, incluindo mediação e conciliação (Comité CEDAW, Recomendação Geral 33); o Comité salientou que qualquer utilização desses procedimentos deve ser estritamente regulamentada e autorizada; apenas quando uma avaliação prévia, por uma equipa especializada que assegure o consentimento livre e informado das vítimas/sobreviventes, e que não existam indicadores de riscos adicionais para as vítimas/sobreviventes ou seus familiares (Comité CEDAW, Recomendação Geral 35). Embora os processos restaurativos sejam distintos de outros processos de resolução alternativa de litígios, as preocupações acima mencionadas sobre desequilíbrios de poder, problemas de segurança e as necessidades prementes de garantir medidas de proteção nos casos que envolvem violência contra as mulheres, são igualmente relevantes para os processos restaurativos. Os mediadores/facilitadores devem ser especialmente treinados para lidar com casos de violência de género. A Comissão sobre o Estatuto da Mulher recomendou que os Estados-Membros tomem as medidas legislativas e/ou outras medidas necessárias para proibir processos de resolução alternativa de litígios obrigatórios, incluindo a mediação e a conciliação forçadas, e isto quanto a todas as formas de violência contra mulheres e meninas. No mesmo sentido, a Convenção de Istambul do Conselho da Europa (2011), que requer aos Estados que previnam a violência contra as mulheres e que protejam as suas vítimas, proíbe a utilização obrigatória de processos de RAL, incluindo a mediação e a conciliação. O Artigo 48.º, n.º 1, permite, assim, a sua utilização na condição de se basear no livre consentimento da vítima.

No Reforço da Prevenção da Criminalidade e das Respostas da Justiça Criminal à Violência contra as Mulheres, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) incentiva os Estados Membros a desenvolver diretivas sobre o uso de processos restaurativos no contexto da violência contra as mulheres, desde que medidas de proteção tão ou mais rígidas sejam promovidas para garantir a segurança da vítima. Os casos de alto risco devem ser excluídos, as vítimas devem ser plenamente informadas e consentir na realização do processo restaurativo. Para além disso, a remessa de processos para a Justiça Restaurativa só deverá ocorrer após acusação formal pelo Ministério Público e uma vez proferida decisão de recebimento dessa acusação pelo juiz de instrução (UNODC, 2014, p. 77).

Há também um grupo de académicos que considera os desafios práticos e as possibilidades de introdução da Justiça Restaurativa em casos de violência familiar ou agressão sexual (cf., por exemplo, Daly e Stubbs, 2006; Kingi et al., 2008; Ptacek, 2010; Daly, 2011). "Uma convergência de opiniões [presente nessa literatura] é que um modelo de conferência “pronto e acabado” (off the shelf) tende a não ser o mais adequado para casos de violência de género, a menos que seja modificado adequadamente e os facilitadores sejam competentes e experientes nesses casos" (Daly, 2011). São, portanto, necessários protocolos e práticas especializadas, adaptados às situações de violência de género.

Nos últimos anos, surgiram orientações práticas neste sentido. Por exemplo, em 2013, a Nova Zelândia publicou normas de Justiça Restaurativa para casos de violência familiar e violência sexual, estipulando que devem ser observadas salvaguardas adicionais nestes casos (Ministério da Justiça, 2013; 2018). Na Europa, o projeto “Justiça Restaurativa em Casos de Violência Doméstica”, financiado pela União Europeia, coordenado pelo Instituto Verwey-Jonker, na Holanda, desenvolveu um guia para profissionais sobre padrões mínimos de Justiça Restaurativa em casos de violência nas relações de intimidade (VRI) (Drost et al., 2016). O guia estabelece princípios adaptados à complexidade dos casos de VRI, garantindo que as vítimas são tratadas de forma segura e de modo competente (para um guia prático sobre Justiça Restaurativa em casos de violência sexual, cf. Mercer et al., 2015).

Na prática, vários países lidam com a violência de género através de processos de Justiça Restaurativa. A Áustria é considerada como um exemplo de boas práticas em situações de violência familiar e de violência de género, proporcionando padrões e métodos de elevada qualidade para se lidar com estas questões sensíveis. Os casos são facilitados/mediados em comediação, por mediadores de géneros diferentes que se tenham especializado na temática da violência familiar. Aproximadamente 20% dos casos de mediação vítima-ofensor encontram-se relacionados com violência conjugal (cf. Haller e Hofinger, 2015; Drostet al., Lünnemann e Wolthuis, 2015). Na Finlândia, a mediação vítima-ofensor tem sido utilizada em casos de violência doméstica desde meados da década de 80 do século XX. A maioria dos mediadores não são certificados, mas são voluntários com conhecimentos específicos na área da violência doméstica. A cooperação interinstitucional entre mediadores, polícia e Ministério Público são consideradas eficazes (cf. Drost et al., 2015; Lünnemann e Wolthuis, 2015).

As pesquisas realizadas no campo da violência de género e da violência doméstica mostram resultados promissores relacionados com: a satisfação dos participantes com os processos de Justiça Restaurativa; a possibilidade de a vítima ter a sua voz ouvida; o reconhecimento dos danos que sofreram; e a garantia de que elas vivenciem um sentimento de justiça (Kingi et al., 2008; Liebmann e Wootton, 2010; Jülich e Landon, 2013; Ministério da Justiça da Nova Zelândia, 2016; e para uma visão geral diferenciada sobre Justiça Restaurativa e violência familiar, cf. Strang e Braithwaite, 2002).

Pesquisas empíricas sobre a mediação vítima-ofensor em casos de violência nas relações íntimas levadas a cabo na Áustria, mostraram níveis elevados de satisfação das vítimas e o potencial da Justiça Restaurativa para devolver o poder às mulheres e reforçar os processos de mudança nas relações (Pelikan, 2000; Pelikan, 2010). 83% das mulheres não experienciaram mais episódios de violência no período de 1,5 a dois anos seguintes. A maioria dessas mulheres (80%) acreditava que a mediação vítima-ofensor tinha contribuído para o não retorno da violência (Pelikan, 2010). Outras pesquisas realizadas na Áustria mostraram que 2,5 a 3,5 anos após a participação em uma mediação vítima-ofensor, 84% dos ofensores não tinham reincidido, sendo essa taxa ainda maior (89%) em casos de violência entre parceiros íntimos (Hofinger e Neumann, 2008).

Um grande estudo empírico na Alemanha comparou casos de violência doméstica com outros casos submetidos a mediação vítima-ofensor e as conclusões revelaram que, em casos de violência doméstica, a Justiça Restaurativa é tão eficaz como em outros crimes. Os encontros restaurativos resultaram em níveis elevados de acordos (88%) e, na maioria dos casos (80%), os acordos foram completamente cumpridos (Bals, 2010).

Como mostram as experiências relatadas, a Justiça Restaurativa oferece um potencial promissor no campo da violência de género se: as salvaguardas forem implementadas e efetivamente aplicadas por instituições que tenham capacidade e recursos suficientes para garantir a segurança das vítimas; e os modelos práticos forem baseados no melhor conhecimento e experiência disponíveis.

 
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