Este módulo é um recurso para professores 

 

Quando a teoria encontra a prática: Tráfico ilícito de migrantes ou tráfico de pessoas?

 

Na prática, identificar corretamente a conduta como tráfico ilícito de migrantes ou tráfico de pessoas tem consequências importantes (ver Mc Adams, 2015, bem como a Anti-Trafficking Review, 2018). Os migrantes introduzidos ilegalmente não beneficiam das medidas de proteção e assistência mais robustas concedidas às vítimas de tráfico. A assistência e a proteção às vítimas de tráfico ao abrigo do Protocolo contra o Tráfico de Pessoas são maiores do que as concedidas aos migrantes introduzidos ilegalmente, ao abrigo do Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes. As penalidades por infrações relacionadas com o Tráfico ilícito de migrantes são também menos severas do que as penas por Tráfico de pessoas.

Evidentemente, determinar se um caso é de tráfico ilícito de migrantes ou tráfico de pessoas pode ser complexo por várias razões, como ilustram os seguintes cenários:

  • Os indivíduos podem contratar os serviços de contrabandistas para chegar ao país de destino. Ainda, podem posteriormente ser enganados, forçados ou ameaçados para uma situação de exploração durante o trânsito (por exemplo, porque os contrabandistas aumentaram unilateralmente a suas respetivas taxas, ou os migrantes não tinham recursos para pagar aos contrabandistas). Os migrantes introduzidos ilegalmente podem ser obrigados a trabalhar por salários muito baixos, prestar favores sexuais ou praticar crimes (como produzir droga ou traficá-la) para pagar os custos de transporte para o país de destino. Nesses casos, as circunstâncias de tráfico ilícito de migrantes ou tráfico de pessoas podem sobrepor-se.
  • Os traficantes de pessoas podem apresentar uma "oportunidade" que poderá parecer mais como uma situação de entrada ilegal a potenciais vítimas. Por exemplo, as pessoas que pretendem migrar podem ser convidadas a pagar uma taxa semelhante à cobrada a outras pessoas que estão a ser introduzidas ilegalmente, mas a intenção do infrator desde o início pode ser a exploração. A taxa faz, nestes casos, parte da fraude e do engano, e uma forma de aumentar os lucros. Assim, embora a existência de uma taxa possa inicialmente parecer que se trata de uma situação de entrada ilegal, uma análise mais minuciosa dos meios, dos atos e da intenção, pode revelar uma situação que constitui tráfico de pessoas.
  • Os contrabandistas podem permitir que os migrantes paguem a taxa de contrabando ao chegarem ao país de destino. Tais situações podem evoluir da introdução ilegal para o tráfico de pessoas (através da imposição de servidão por dívidas), após a conclusão da operação de contrabando. Se as circunstâncias são ou não de exploração dependerá do caso particular em questão.
  • O tráfico ilícito de migrantes pode ser, à partida, a intenção planeada dos contrabandistas, mas durante a operação de contrabando pode surgir uma oportunidade para os migrantes serem identificados e selecionados. Os contrabandistas podem entregar os migrantes a traficantes ou explorá-los diretamente.
  • As mesmas pessoas podem praticar tanto o tráfico ilícito de migrantes como o tráfico de pessoas, por vezes, durante a mesma operação. As mesmas rotas e os mesmos métodos de transporte podem ser usados levar pessoas a destinos completamente diferentes. O facto de o mesmo empreendimento poder incluir fluxos migratórios mistos (compreendendo migrantes introduzidos ilegalmente e vítimas de tráfico, entre outros) dificulta significativamente o trabalho dos investigadores, nomeadamente porque, nas fases iniciais, os dois cenários podem não ser facilmente distinguidos. Isto pode ser ainda mais complexo pelo facto de as vítimas de tráfico não se reconhecerem como tal, acreditando que também elas são migrantes a ser introduzidos ilegalmente.

O exemplo abaixo, ver Caixa 5, mostra o caso de um grupo criminoso organizado envolvido simultaneamente no tráfico ilícito de migrantes e no tráfico de pessoas. O que se inicia como um empreendimento para a introdução ilegal de migrantes, envolvendo dez migrantes, terminou com a introdução ilegal de nove migrantes e no tráfico de uma vítima.

Caixa 5

Fluxos migratórios mistos

Uma organização criminosa celebrou contratos com 10 pessoas para transportá-las ilegalmente do país de origem 1 para o país de destino 2. Cada pessoa teria de pagar uma taxa de US$10.000. Aquando da chegada ao país de destino 2, nove pessoas pagaram os 10 mil dólares e foram libertadas pelos contrabandistas. No entanto, os contrabandistas, em busca de maximizar os seus lucros, informaram à décima pessoa que a sua taxa de serviço seria de US$30,000. O décimo migrante não pôde pagar o aumento da taxa e, em vez de o libertarem, os contrabandistas venderam-no ao dono de um bordel. A organização criminosa envolveu-se, na mesma ocasião, tanto no tráfico ilícito de migrantes, como no tráfico de pessoas. O que começou como uma empresa de tráfico ilícito de migrantes envolvendo dez migrantes, terminou com a introdução ilegal de nove migrantes e o tráfico de uma vítima.

UNODC, In-depth training manual on investigating and prosecuting the smuggling of migrants, Módulo 2: Análise comparativa do Tráfico ilícito de migrantes e do tráfico de pessoas.

Considerando estes exemplos, é evidente que o que pode começar como uma investigação sobre tráfico ilícito de migrantes pode acabar por ser um caso de tráfico e vice-versa. A chave é investigar a conduta e os factos circundantes, avaliar se alguma infração foi cometida e, em caso afirmativo, investigar e processar todos os crimes praticados.

Deve ter-se em conta que quando o tratamento abusivo ou desumano está em causa, o caso não se configura automaticamente em tráfico. Pelo contrário, pode ser um caso de tráfico ilícito de migrante na sua forma agravada, de acordo com o artigo 6 (3) do Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes. O ilícito configurar-se-á em tráfico de pessoas se, por exemplo, o interessado for recrutado através de fraude, não tenha permissão de se ir embora, e quando houver exploração pelos agressores. Em última análise, será determinante se os elementos constitutivos do crime de tráfico de pessoas, ao abrigo do Protocolo contra o Tráfico de Pessoas, estão preenchidos (tal como transposto à legislação interna).

Quando os migrantes já não têm liberdade de escolha e forem forçados, intimidados, manipulados ou coagidos a cumprir os desejos dos contrabandistas - ou o fizeram devido ao abuso da sua posição de vulnerabilidade - deve ser determinado se o crime também pode configurar um crime de tráfico de pessoas. Veja o exemplo na Caixa 6.

Caixa 6

IIM ou TSH?

Nok é uma mulher de 20 anos do Sudeste Asiático. É viúva e sustenta os seus dois filhos pequenos vendendo vegetais. Um dia, a amiga Patnaree aproxima-se dela. Patnaree diz que pode encontrar a Nok um emprego como trabalhadora doméstica em outro país do Sudeste Asiático, onde pode receber 10 vezes os seus ganhos mensais atuais. Patnaree também promete planear toda a viagem e pagar por ela se Nok concordar em restituir o empréstimo assim que começar o seu novo emprego no país de destino. Acreditando que o rendimento extra poderia beneficiar a sua família, Nok deixa os filhos aos cuidados da mãe e inicia a sua viagem de autocarro na companhia de Patnaree. Nok não tem passaporte, mas Patnaree garante-lhe que não vai precisar de um, uma vez que tem amigos na fronteira. A algumas milhas da fronteira, saem do autocarro e esperam num café à beira da estrada até se juntarem a um camionista chamado Than. Nok fica surpresa ao ver Patnaree pagar uma quantia significativa de dinheiro antes de entrarem no camião e continuarem a viagem até à fronteira. Atravessam a fronteira sem problemas, como Patnaree prometeu. É a única vez que Nok cruza conscientemente uma fronteira na sua viagem até ao país de destino. O condutor do camião, que é amigável, pede a Nok que viaje no compartimento traseiro fechado do camião de modo a evitar problemas na fronteira seguinte. É escuro, quente e muito desconfortável na parte de trás do camião, mas Nok concorda, uma vez que não tem passaporte e só pode confiar nos conselhos e na boa vontade e amizade de Patnaree. É uma longa viagem, e a viagem de Nok no compartimento traseiro do caminhão chega ao fim num campo vazio ao lado de um grande rio, onde Patnaree e o motorista encontram quatro homens, cidadãos do país de destino. Os quatro homens levam Nok através do rio. A Nok é dito que está agora no país de destino. Foi-lhe ordenado que entrasse na parte de trás de um camião que estava à sua espera ao lado do rio. Na parte de trás do camião estão outras sete mulheres. Nok tem medo, já não acredita que lhe seja dado o emprego que lhe foi prometido. Quando se recusa a entrar no veículo, um dos homens ameaça-a com uma arma. Os quatro homens viajam juntos na cabine do veículo. Nok e as outras mulheres são levadas para uma casa privada numa grande cidade. Durante um período de várias semanas, os quatro homens abusam repetidamente física e sexualmente das mulheres. Não lhes permitem sair do local. Um homem diz a Nok que se ela escapar, a polícia vai colocá-la na prisão por estar no país sem passaporte e que nunca mais verá os seus filhos. Ele também ameaça localizar e traficar os seus filhos se ela tentar escapar. Outros homens visitam a casa, e Nok é forçada a  ter relações sexuais com eles, pelo queos seus quatro raptores recebem o pagamento. Ela não está autorizada a reter nenhuma parte do dinheiro e não está autorizada a sair do edifício.

Case-Study: Nok
UNODC, A Short Introduction to Migrant Smuggling

“Em 7 de Janeiro de 2010, o arguido Schwarz introduziu ilegalmente a vítima J.D.P.A. na Suíça para fins de exploração sexual.

Uma vez na Suíça, a vítima J.D.P.A. foi forçada a trabalhar como prostituta, sendo mantida presa numa "cadeia privada" e o arguido também forçou a vítima a pagar-lhe cerca de mil francos suíços por dia. Cada programa valia cerca de duzentos francos suíços.

A investigação teve início após o depoimento do M.C.C.S. que tinha uma relação com o arguido Schwarz. M.C.C.C.S. descobriu o que aconteceu à vítima J.D.P.A. através de mensagens telefónicas enviadas pela vítima descrevendo que esta se encontrava numa situação terrível e perigosa. M.C.C.C.S. descreveu também o modus operandi utilizado pelo arguido Schwarz para escolher as mulheres que levaria para a Europa para fins de exploração sexual. Inicialmente, enganava as vítimas fingindo estar apaixonado por elas e, depois de ter ganho a sua confiança, pedia-lhes que conseguissem que outras mulheres se interessassem por trabalhar na Europa. O arguido organizou as viagens e até pagou os seus passaportes.”

Base de dados Sherloc – Brasil

A exploração, como elemento constituinte do tráfico de pessoas (em oposição ao tráfico ilícito de migrantes) pode parecer uma diferença clara entre ambos os crimes. No entanto, esta distinção nem sempre é evidente na prática.

A linha entre as duas infrações torna-se menos clara quando, por exemplo, um migrante é explorado durante a operação de introdução clandestina ou à chegada ao país de destino. Por exemplo, o migrante pode ser confrontado com a opção de ficar preso num país desconhecido ou pagar ao passador uma quantidade ainda superior de dinheiro do que o inicialmente acordado. O migrante pode temer pela sua segurança e, por isso, concordar em fazer o pagamento. Se o/a migrante não puder pagar o valor estipulado poderá oferecer outros benefícios que equivalem à exploração (por exemplo, serviços sexuais). O passador pode também colocar o migrante numa situação de servidão por dívida, segundo a qual a viagem procede sob a condição de que, uma vez no país de destino, o migrante trabalhará em dependência do passador/traficante. As condições de trabalho podem ser abusivas. Nesta situação, será necessário um olhar mais aprofundado para verificar se o caso é de tráfico ilícito de migrantes na sua forma agravada (artigo 6 (3) (b) ou tráfico de pessoas.

Os exemplos acima referidos ilustram ´zonas cinzentas´ relativamente às quais a decisão final sobre se uma pessoa é vítima de tráfico de pessoas ou se se trata de um migrante introduzido ilegalmente só pode ser devidamente verificada olhando para o caso na sua totalidade e à luz das suas circunstâncias distintas.  

 
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