Este módulo é um recurso para professores
Tópico dois – Mecanismos e Atores principais em termos de responsabilização e supervisão da polícia
Esta secção explica os meios através dos quais os mecanismos de controlo e supervisão, internos e externos, contribuem para a responsabilização da polícia, levando em consideração a estrutura do conceito da UNODC de “responsabilização antes, durante e depois do ato”. Em toda a secção, os termos “supervisão ex-ante, contínua e ex-post” também serão usados para refletir estes três momentos em sede de responsabilidade.
Controlo interno dentro da polícia
O primeiro grau de controlo em qualquer sistema de responsabilização da polícia é o mecanismo de controlo interno. Os mecanismos eficazes de controlo interno, têm um papel essencial a desempenhar dentro de um sistema de responsabilização da polícia, tanto do ponto de vista preventivo quanto reativo. Tais mecanismos têm três componentes principais:
1 – Padrões profissionais e de integridade;
2 – Supervisão e monitorização contínuos; e
3 – Mecanismos internos de relatórios e disciplinares (DCAF, 2015a).
Responsabilização antes do ato: padrões profissionais e de integridade
Como mencionado nas secções anteriores, todas as ações da polícia devem estar pautadas na lei. No entanto, as estatuições legais podem revelar-se insuficientes, no que diz respeito ao exercício diário dos poderes da polícia. É imperativo, portanto, que os serviços da polícia desenvolvam padrões profissionais abrangentes (códigos de conduta), fornecendo orientações claras sobre o exercício de deveres e poderes de polícia, na prática. A título exemplificativo, a existência de padrões profissionais, diretrizes e instruções claras sobre os procedimentos de prisão e detenção seria um primeiro passo para impedir que os agentes policiais violassem a lei aquando das detenções.
No entanto, os padrões profissionais não se revelam como sendo suficientes. Como foi afirmado anteriormente, de acordo com a lei, geralmente os polícias têm um amplo grau de discrição no exercício dos seus poderes. Podem verificar-se circunstâncias em que os polícias enfrentem dilemas éticos, como a tendência de adulterar certas leis para alcançar o que consideram objetivos maiores de aplicação da lei ou a tendência de aplicar táticas enganadoras num interrogatório, para extrair informações cruciais ou confissões de suspeitos (CICV, 2013, 140). Precisamente para essas situações, os serviços da polícia precisam de ter um código de ética que estabeleça padrões de integridade abrangentes, baseados nos valores da imparcialidade, justiça, igualdade, honestidade e princípios de respeito, direitos humanos e dignidade (Costa e Thorens 2015). Dependendo do sistema administrativo do país, esses padrões profissionais e de integridade podem ser desenvolvidos pelo Ministério ou em consulta com este ao qual o polícia se reporta. As provas também mostram que, se os padrões de integridade forem desenvolvidos numa perspetiva participativa, com a polícia e outros protagonistas, haverá uma maior probabilidade de que sejam levados a bom termo e implementados pela polícia.
Se um código de ética que estabelece padrões de integridade for bem promovido, terá o potencial de orientar as ações de polícias que enfrentam dilemas éticos, de contribuir para uma melhor identificação, análise e resolução de problemas éticos e de auxiliar o exercício da liderança e gestão em toda a organização e aumentar a confiança do público na polícia (CoE, 2001, Memorando Explicativo).
Não existe um padrão internacional prescritivo sobre o que um código de ética deve incluir. No entanto, o Código Europeu de Ética da Polícia (2010) é amplamente reconhecido e promovido como um modelo de código internacional. Este é composto por 66 artigos, estando organizado nos seguintes subtítulos:
- Objetivos da polícia
- Base jurídica da atuação policial em sede de Estado de Direito
- A polícia e os sistemas de justiça criminal
- Estruturas organizacionais da polícia (recrutamento, retenção, treino e direitos do pessoal)
- Diretrizes para a ação da polícia (incluindo os direitos humanos e os padrões éticos, como respeitar e proteger os direitos humanos fundamentais, agir de acordo com os princípios de legalidade, imparcialidade, não discriminação, consideração pela proteção de grupos em risco de vulnerabilidade)
- Responsabilização e controlo da polícia
- Investigação e cooperação internacional
Encontram-se articulados padrões semelhantes: na Declaração de Seul (AGN / 68 / RES / 4), adotada pelo Grupo de Peritos sobre corrupção da INTERPOL; na Resolução de Harare sobre o Código de Conduta para Funcionários da Polícia (2001), adotada pela Organização de Cooperação dos Chefes de Polícia Regional da África Austral (SARPCCO) e na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), adotada pela resolução 58/4 da Assembleia Geral (ver Artigo 8.º).
O desenvolvimento de padrões profissionais e de integridade não é suficiente para garantir a atuação em conformidade. Os serviços da polícia devem promover amplamente o código de ética e os padrões de integridade em toda a organização, bem como incorporar a implementação de padrões de integridade nos processos de recrutamento, treino e promoção. Desenvolver e implementar efetivamente padrões de integridade são ferramentas preventivas importantes para o controlo interno e, assim, contribuem para a “prestação de contas antes do ato”. (O Módulo 14 sobre Ética Profissional da Série de Módulos da Universidade E4J sobre integridade e ética, fornece mais informações sobre padrões de integridade e ética para profissões específicas.
Responsabilização durante o ato: Supervisão e monitorização contínua dos processos organizacionais e do comportamento individual
O segundo componente do controlo interno visa alcançar a “responsabilidade durante o ato”, através do estabelecimento de mecanismos de supervisão e monitorização. Os objetivos principais da supervisão e monitorização contínua são os de verificação da conformidade das práticas quotidianas da polícia com as leis, políticas e padrões de integridade, bem como o detetar de comportamentos ilegais e/ou antiéticos (CICV, 2013, p.140).
A concretização desses objetivos exige que seja estabelecida uma cadeia de comando clara, cuja finalidade é dupla. Primeiro, essa cadeia permitiria aos serviços da polícia rastrear a responsabilidade final, por um ato ou omissão da polícia (CoE, 2001, Artigo 17.º). Isto é importante porque, de acordo com as normas internacionais, além do polícia que terá cometido um crime, o seu supervisor imediato que instruiu esse ato ou que não conseguiu impedir a prática do delito também deve ser responsabilizado (Princípios sobre o uso da força e armas de fogo, 1990, Princípio 24.º). Segundo, uma cadeia de comando estabeleceria claramente as respetivas funções e responsabilidades de monitorização, de todos os polícias com hierarquias de supervisão na hierarquia.
A supervisão e monitorização eficaz nos serviços da polícia podem ser alcançadas por meio de diversos procedimentos e mecanismos. Encontramos infra alguns exemplos selecionados:
Procedimentos rigorosos de manutenção de registos, informações e relatórios internos, que ajudariam os supervisores a monitorizar as atividades dos seus subordinados, analisando tendências, identificando práticas problemáticas dos relatórios de incidentes e avaliando se existem fatores sistemáticos por detrás dessas práticas (OSCE, 2009, para.113).
Mecanismos de auditoria interna para uma revisão regular do recrutamento, treino, promoção e outros processos de gestão de recursos, para avaliar se estes promovem efetivamente os padrões profissionais e de integridade estabelecidos pela polícia.
Procedimentos com vista a inspeções regulares e sem aviso prévio, bem como verificações pontuais, pelos supervisores de locais com alto risco de violação dos direitos humanos, como instalações de custódia e salas de interrogatórios.
Os serviços da polícia devem, portanto, desenvolver procedimentos detalhados para a gerência de armas de fogo e munições, a fim de criar uma trilha de auditoria. A “Prática Profissional Autorizada”, desenvolvida pela Faculdade de Polícia do Reino Unido, possui um conjunto abrangente de regras sobre o rastreamento de armas e equipamentos, sendo assim uma prática promissora neste sentido. O rastreamento não é apenas necessário para a munição de armas de fogo, mas está a tornar-se cada vez mais relevante no uso de armas menos letais, particularmente os dispositivos de energia conduzidos, também conhecidos como Taser (arma de choque). Embora o Taser seja uma alternativa menos letal às armas de fogo, o seu uso inadequado pode causar danos sérios e conduzir à morte. (O Módulo 5, sobre o uso da força e armas de fogo, fornece mais informações sobre o uso de armas menos letais pela polícia). Os serviços da polícia procuram cada vez mais alcançar o uso de Tasers, como forma de garantir que o seu uso seja legal, necessário e proporcional. Por exemplo, a Força de Polícia de Nova Gales do Sul, na Austrália, usa Tasers como mecanismos de rastreamento embutidos, incluindo uma câmara Taser, que é “equipada com a arma, para capturar informações de áudio e visuais antes, durante e após o uso do Taser”, uma instalação de download de dados que “permite que certas informações sobre cada uso do Taser armazenadas no chip de dados da arma sejam descarregadas e, ainda, que certas marcações do dispositivo de identificação anti-crime (AFID), que inclui o número de série do cartucho TASER, o qual é publicado sempre que o Taser é descarregado, para que o cartucho do Taser usado possa ser identificado. Os registos da polícia podem ser usados para interligar o cartucho com o Taser e, consequentemente, com o operador Taser” (NSW Ombudsman, 2012, p.81).
A coleta e análise de dados desagregados por idade, género e, quando relevante, outras características protegidas (como raça e identidades técnicas/religiosas), no exercício das funções da polícia: A coleta e a revisão regular dos dados desagregados serviriam inerentemente como mecanismo interno de responsabilização, dado que essa revisão proactiva permitira a identificação de tendências e o reconhecimento precoce de práticas potencialmente problemáticas. Por exemplo, uma revisão regular dos dados desagregados de operações stop e buscas pode revelar práticas desproporcionais de operações stop e busca dirigidas a homens jovens de uma determinada raça ou religião. Embora os dados desse tipo necessitem ser interpretados cuidadosamente, visto que uma desproporção desse tipo pode chamar à atenção para que a as entidades superiores examinem mais de perto os dados das operações stop e das buscas, para conversarem com os agentes policiais envolvidos sobre os fundamentos e justificações para os polícias que agem desproporcionalmente e, se necessário, reverem práticas e diretrizes operacionais, pelo que se deve evitar a criação de perfis baseados em preconceitos.
É importante notar que o papel de supervisão da polícia não se limita à monitorização de procedimentos internos e dos seus subordinados. Eles devem “dar o exemplo”, exibindo os mais altos padrões de integridade na sua conduta profissional diária, de modo a promover uma cultura de conduta ética em toda a organização (CoE, 2001, artigo 20). Outra maneira importante para promover uma cultura de integridade em toda a organização, consiste em destacar as práticas dos agentes policiais que defendem consistentemente os direitos humanos. Isto pode ser feito através do reconhecimento de ações exemplares por parte dos polícias em conformidade com os direitos humanos, nos boletins internos ou até mesmo promover essas práticas nos meios de comunicação social. Destacar práticas positivas demonstraria que as entidades superiores valorizam a implementação de padrões de integridade na prática. (Para obter informações adicionais, consulte a série de módulos da Universidade E4J sobre Integridade e Ética).
Em suma, uma cadeia de comando bem estabelecida, com gerentes que tenham funções de supervisão claramente definidas e mecanismos de monitorização eficazes, também contribui para a responsabilização da polícia “durante o ato”.
Prestação de contas após o ato: mecanismos de tratamento de reclamações
O terceiro, e provavelmente o componente mais importante do controlo interno, consiste nos mecanismos para lidar com os relatórios internos de irregularidades e queixas públicas contra a polícia de maneira imparcial, oportuna e completa. A literatura reconhece a contribuição positiva de mecanismos eficazes de responsabilização para a confiança do público na polícia (Goldsmith, 2005).
Os padrões infra, ao seguirem os padrões internacionais e as boas práticas em todo o mundo, garantem um tratamento eficaz de reclamações internas e mecanismos disciplinares:
- Os serviços da polícia devem estabelecer canais seguros para relatar irregularidades cometidas por um colega (UNODC, 2011, p.90; OSCE, 2009, part.31). Esses canais devem estar acessíveis às testemunhas (ver: O papel dos denunciantes na prestação de contas da polícia sob o Tópico Três, para uma discussão mais detalhada sobre denúncias) e para os polícias que são vítimas de tais irregularidades (por exemplo, casos internos de assédio sexual, discriminação, assédio moral).
- Os serviços da polícia também devem estabelecer mecanismos e procedimentos eficazes para receber, tratar e investigar reclamações de membros do público contra os políticos. Para este fim:
- Deve haver várias maneiras de apresentar uma reclamação (pessoalmente na polícia, por escrito, por telefone, online). A polícia também deve aceitar reclamações anónimas.
- A polícia deve informar ativamente o público em geral, bem como aqueles em contacto com o sistema de justiça criminal – testemunhas, vítimas e agressores – sobre o modo como estes podem reclamar (Bryne e Priestley, 2017, p.11).
- O polícia que recebe a reclamação deve ser legalmente obrigado a aceitar e registar essa reclamação. Não deve ser deixado ao critério de um único agente rejeitar ou descartar a denúncia (Amnistia Internacional, 2015, p.37).
A polícia deve desenvolver regras de procedimento que abranjam o tratamento de reclamações, incluindo prazos para a conclusão de uma investigação, métodos e procedimentos para a condução de investigações disciplinares e criminais, assim como sanções disponíveis para diversas condutas impróprias. Tal garantiria a consistência nas investigações e a transparência em relação ao queixoso e ao polícia acusado (CICV, 2013, p.341).
As investigações das queixas devem ser conduzidas por uma unidade ou agentes da polícia que sejam razoavelmente independentes do polícia envolvido no incidente que originou a queixa (OSCE,2009, par.87).
Durante toda a investigação, a polícia deve respeitar, proteger e cumprir os direitos das vítimas e reclamantes. Isso inclui o direito de ser informado durante e após a investigação, o direito de fornecer provas e chamar testemunhas, o direito de apelar e instaurar processos civis e criminais em paralelo, conforme a Declaração de Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e Abuso de Poder (Resolução 40/34 da GA) (o Módulo 11 sobre justiça para vítimas fornece mais informações sobre os direitos das vítimas).
Devem ser adotadas as medidas necessárias para salvaguardar os direitos do polícia acusado, particularmente o direito de ser notificado sobre a investigação, o direito à assistência jurídica, o direito de ser ouvido e o direito de defesa (PACE, 1979, artigos 7.º – 9.º).
Depois de concluída a investigação e a autoridade relevante da polícia decidir sobre o resultado apropriado ou a sanção, deve haver mecanismos para que o acusador e o acusado possam recorrer dessa decisão (CoE, 2011, Artigo 33.º).
Os dados sobre reclamações devem ser sistematicamente revistos e analisados pela polícia, juntamente com grupos de especialistas externos. Tal ajudaria a polícia a identificar as causas subjacentes e sistemáticas da má conduta, bem como a aprender com os erros (OSCE, 2009, parágrafo 91). De acordo com os padrões das Nações Unidas, é uma boa prática “divulgar o número de reclamações recebidas, a natureza das reclamações e as suas consequências, incluindo o número de polícias que foram sujeitos a um processo disciplinar e processados criminalmente (UNODC, 2011, p.38).
Não há dúvida que os mecanismos internos que tratam das reclamações acarretam vantagens relacionadas com um melhor conhecimento da cultura e do ambiente da polícia, melhores recusos para a investigação (conhecimento e meios técnicos) e maior probabilidade de cooperação do polícia acusado com os investigadores (UNHRC, 2010, parágrafos 25 a 26; OSCE, 2009, parágrafos 87). No entanto, se os polícias puderem investigar os crimes e infrações disciplinares por si mesmos, existirá o risco de que as investigações não sejam realizadas completamente, que falhas sistemáticas não sejam identificadas e que os autores não sejam punidos adequadamente, resultando numa cultura de impunidade. Portanto, os atores externos de controlo e supervisão devem estar ativamente envolvidos, em todas as etapas da prestação de contas antes, durante e depois do ato.
Controlo Executivo
Na maioria dos países, o poder executivo desempenha um papel importante no sistema de prestação de contas da polícia. Como a polícia é hierarquicamente parte do poder executivo (geralmente pertencendo ao Ministério do Interior ou ao Ministério da Justiça), a natureza da função do executivo é mais de “controlo” – implicando capacidade direta de modificar acções da polícia – do que a “supervisão”, como é o caso de outros atores externos no sistema de prestação de contas. Embora a extensão do papel do executivo dependa da estrutura administrativa e do governo de um Estado, o executivo contribui para responsabilizar a polícia de várias maneiras, nas três etapas.
Controlo ex-ante |
Controlo contínuo |
Controlo ex-post |
Na maioria dos países, o ministério ao qual a polícia se reporta é responsável por definir a visão geral da aplicação da lei, pelo estabelecimento de políticas abrangentes para o recrutamento, indicadores de desempenho, promoções e treino, bem como para desenvolver o código disciplinar (UNODC, 2011, p.98). Nas sociedades democráticas, algumas dessas tarefas são realizadas em consulta com a polícia; em países altamente descentralizados, certas tarefas podem ser completamente delegadas à polícia. |
O executivo examina regularmente a polícia, através de inspeções. Mais uma vez, a estrutura hierárquica e o mandato das inspeções variam de país para país. No entanto, na maioria dos casos, as inspeções são encarregues de avaliar o cumprimento da lei pela polícia, política e dos códigos de conduta (Born et.al., 2012, p.196). Ao fazer isso, a maioria das inspeções concentra-se na identificação de problemas e falhas sistemáticas, em vez de investigar casos individuais de má conduta, o último dos quais é frequentemente delegado à polícia. Execionalmente, a inspeção pode assumir as investigações relacionadas com a alta administração da polícia ou queixas com alegações de violações graves, especialmente se não existirem mecanismos de investigação independentes nesse país. |
Dependendo dos resultados da inspeção, o executivo pode decidir alterar ou introduzir novas políticas para tratar de questões sistemáticas e melhorar a responsabilidade da polícia. Além disso, nalguns países o executivo tem o poder de demitir o chefe da polícia após uma investigação pela prática de um crime ou uma irregularidade. |
Um meio através do qual o executivo poderia contribuir significativamente para a responsabilização da polícia, seria garantindo que os documentos estratégicos e de definição de políticas estejam alinhados com os padrões internacionais de direitos humanos e promovendo a integridade em toda a polícia. Por exemplo, incorporar a conformidade com os padrões de integridade, como critério-chave para o recrutamento e a promoção de polícias, ajudaria a integrar uma cultura de ética em toda a organização. Por outro lado, os critérios de desempenho que medem o desempenho operacional pelo número de prisões, pode resultar, nomeadamente, numa alta incidência de detenções arbitrárias, violando assim os padrões internacionais de direitos humanos.
Exemplos de controlo executivo no país
No Quénia, o governo cancelou o recrutamento de 3.000 agentes e suspendeu 60 polícias séniores, após uma investigação da Comissão Anticorrupção revelar que até 80% dos candidatos tinham pago subornos ou usado conexões para obter empregos (BBC, 2005). Na Eslovénia, enquanto a maioria das queixas disciplinares por conduta imprópria é tratada pela polícia, um painel ministerial investiga diretamente as queixas em que estão envolvidas crianças ou membros de comunidades ou minorias nacionais ou étnicas, bem como outros grupos vulneráveis (Lei de Tarefas e Poderes da Polícia da Eslovénia, 2013, Secção IV).
Um dos principais desafios do controlo executivo consiste no facto de as inspeções e outros mecanismos executivos não serem geralmente percebidos pelo público como garante da responsabilização da polícia. Tal é particularmente problemático em países onde a inspeção é nomeada diretamente pelo Ministro e reporta ao próprio Ministro, revelando ausência de transparência. Nesses casos, seria possível que um ministro influenciasse o trabalho da inspeção, para encobrir as irregularidades dentro da polícia; ou insrumentalizar o trabalho da inspeção para promover a sua agenda política.
Supervisão judicial da polícia
O sistema judiciário consiste num elemento indispensável de um sistema de responsabilização da polícia, pelo qual os juízes e promotores têm poderes estatutários com vista a exercer controlo e supervisão ex ante, contínua e ex post e supervisão da polícia.
Controlo ex ante: autorização judicial |
Supervisão contínua |
Supervisão ex post: adjudicação |
A aplicação de certos poderes da polícia acarreta um alto risco de violação de direitos humanos fundamentais. Isto inclui buscas em residências particulares ou a acumulação de informações através da vigilância secreta das comunicações, que podem ser necessárias para investigar o crime organizado ou os delitos relacionados com o terrorismo. As sociedades democráticas sujeitam a aplicação desses poderes à autorização judicial, uma vez que o poder judicial costuma ser mais adequado para rever a legalidade, necessidade e proporcionalidade dos métodos de investigação propostos. A esse respeito, o sistema judiciário desempenha um papel directo em garantir a “responsabilização antes do ato”, autorizando ou rejeitando a aplicação de medidas de investigação especial, mantendo assim as investigações da polícia dentro dos limites da lei e dos padrões dos direitos humanos. |
Nalguns sistemas de justiça criminal, os procuradores têm o poder de conduzir, dirigir ou supervisionar investigações criminais. Nesses casos, os procuradores têm a responsabilidade direta de examinar a legalidade das atividades da polícia, no curso da investigação, e de monitorizar a observância dos direitos humanos pelos polícias (CoE, 2000, artigo 21). |
Quando as ações da polícia constituem (ou são suspeitas de constituir) uma violação do código criminal, as instituições judiciais investigam, processam, julgam e, se necessário, condenam os polícias envolvidos. Além disso, o poder judicial desempenha um papel fundamental no fornecimento de vias corretivas para as vítimas de má conduta da polícia, principalmente por meio de processos cíveis (Born et.al, 2012, p.201). O cumprimento do direito ao recurso, conforme estipulado pelo PIDCP (Resolução GA 2200A (XXI), artigo 2 (3) a), é central para um sistema eficaz de prestação de contas. |
Embora o sistema judiciário desempenhe um papel crucial na prestação de contas pela polícia, na prática, existem certas limitações e desafios para uma supervisão judicial eficaz da polícia. Em primeiro lugar, geralmente há um limite para os poderes da polícia sujeitos a controlo judicial ex ante. Nem todos os poderes da polícia podem estar sujeitos a uma autorização judicial prévia e, portanto, os países normalmente apenas sujeitam os poderes da polícia considerados mais intrusivos ao controlo judicial ex ante, como a vigilância de equipamentos eletrónicos e telecomunicações. A extensão dos poderes da policia que exigem controlo judicial ex ante varia consoante a jurisdição.
Existem certos tipos de funções policiais, como a polícia secreta, que, normalmente, não são colocados sob controlo judicial ex ante. Geralmente, os serviços da polícia determinam as regras que orientam a conduta dos agentes encobertos. A natureza inerentemente secreta do trabalho, combinada com a falta de controlo ex ante da aplicação de métodos da polícia secreta, deixa muito pouco espaço para uma supervisão judicial efetiva ou qualquer outra supervisão externa neste campo. Na maioria dos casos, os métodos secretos de aplicação da lei entram num exame detalhado ex post fatos seguintes queixas e ações movidas contra polícias ou serviços. No entanto, há um apelo crescente, por parte de especialistas e organizações especializadas em polícias e direitos humanos, com vista a sujeitar os agentes encobertos a uma supervisão judicial prévia (Liberty UK, 2013; JUSTICE, 2011). Se a polícia secreta e os outros métodos de polícia potencialmente controversos levantarem questões sobre se o escopo dúvidas, o controlo judicial ex ante deve ser estendido; ainda deverá verificar-se se o poder judiciário seria capaz de supervisionar efetivamente esses métodos da polícia.
Em segundo lugar, no que diz respeito à revisão ex ante das garantias de vigilância, se os juízes que analisam os pedidos de mandado policial não tiverem conhecimento e experiência necessários em medidas intrusivas de investigação, bem como sobre as suas implicações para os direitos humanos, estes poderão não ser capazes de avaliar criticamente a situação necessária ao caso e a proporcionalidade de tais medidas (Wills, 2015, p.55). Mesmo que possuam esse conhecimento, quando os juízes não são estritamente independentes do executivo, podem hesitar em rejeitar os métodos de investigação da polícia, especialmente para investigar casos relacionados com o terrorismo ou o crime organizado ou à política mostrando, ao invés, uma tendência para a aceitação dos mesmos.
Em terceiro lugar, em muitos sistemas de justiça criminal, a Procuradoria e a polícia mantêm uma cooperação e relações de trabalho muito próximas. Portanto, pode ser difícil para os procuradores fiscalizarem efetivamente a conformidade da atuação policial com os direitos humanos durante uma investigação que devem supervisionar, ou investigar os crimes dos polícias com quem trabalharam outrora (Born et.al, 2012, p.202).
Os Estados tentam mitigar esses desafios, designando juízes especializados para rever garantias e promotores especiais para investigar ofensas pela polícia (CoE, 2009, par.85); ou estabelecendo mecanismos de investigação independentes, para investigar alegações dos crimes mais graves cometidos pela polícia (ver sub-secção 2.5 abaixo).
Supervisão Parlamentar da Polícia
Incorporando a legitimidade democrática final, os parlamentos exercem funções legislativas, orçamentais e de monitorização antes, durante e depois das acções dos polícias.
Supervisão ex ante |
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Um dos papéis mais cruciais dos parlamentos em todo o mundo consiste de redigir, alterar e promulgar leis. Portanto, é da competência do parlamento estabelecer uma estrutura legal abrangente sobre a polícia, de acordo com as leis internacionais e os padrões de direitos humanos. As leis sobre a polícia devem fornecer um mandato e poderes policiais claramente definidos, bem como mecanismos de responsabilização para quando a polícia infringir a lei (DCAF, 2015b). Além da elaboração de leis, os parlamentos têm outras funções que contribuem para a “prestação de contas antes do ato”: a maioria dos parlamentos está envolvida na revisão, alteração e adoção do Orçamento do Estado, o qual inclui o orçamento da polícia. Um exame minucioso do orçamento da polícia proposto pode revelar aquisições desnecessárias ou áreas com alto risco de corrupção. Além disso, nalguns paíse, os parlamentos supervisionam ou mesmo aprovam as nomeações para os cargos mais elevados da polícia (como o Chefe da Polícia Nacional). Os parlamentos podem usar essa função para promover a incorporação de padrões éticos e de integridade, nos processos de selecção e nomeação dos chefes da polícia. |
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Supervisão contínua |
Supervisão ex post |
Os parlamentos usam uma variedade de mecanismos e procedimentos com vista a contribuir para a “prestação de contas durante o ato”, dos quais os mais importantes são as comissões parlamentares que geralmente têm o poder de solicitar e rever os relatórios da polícia, realizar audiências parlamentares, convocar membros do executivo, órgãos da polícia e especialistas em determinados temas para testemunhar em audiências parlamentares, iniciar investigações parlamentares e realizar inspecções nas instalações da polícia ( UNODC, 2011, p.95). Esses instrumentos parlamentares consistem em ferramentas cruciais para verificar se a polícia age no âmbito das leis, estratégias e políticas desenvolvidas e adoptadas pelo poder legislativo e pelo poder executivo. |
Além das comissões permanentes, alguns parlamentos estabelecem comissões parlamentares de inquérito ad hoc, muitas vezes após um escândalo da polícia, que tenha causado uma reação significativa do público. Nestes casos, são criadas comissões ad hoc para apurar os factos, responsabilizar a alta administração da polícia perante o parlamento e fazer recomendações com vista a melhorar a organização policial no futuro. Cabe ainda ressaltar que essas comissões não possuem poderes judiciais e não se destinam a substituir processos judiciais que possam estar a ocorrer em simultâneo. |
Exemplos nacionais de supervisão parlamentar
A Assembleia Nacional da África do Sul tem um comité permanente denominado “Comité de Portfólio de Polícia”, o qual está exclusivamente encarregue da supervisão da polícia. Para esse efeito, o referido comité tem usado efetivamente os poderes legislativos, orçamentais e de monitorização para supervisionar a polícia. Como parte do seu trabalho de monitorização, o comité desenvolveu um questionário padronizado para a polícia e utiliza-o nas suas visitas regulares, sem aviso prévio, à polícia, de modo a haver uma supervisão mais eficaz e coordenada (APCOF, 2014). Em 2018, o Parlamento da Geórgia criou uma comissão temporária de inquérito sobre o homicídio de dois adolescentes. A acusação e o julgamento do caso provocaram graves protestos públicos, quando foi revelado que um funcionário do Gabinete do Ministério Público, familiar de uma testemunha importante no caso, tentou ocultar provas. A absolvição dos suspeitos originou sérios problemas e consequências, designadamente a renúncia do procurador público principal e a criação da comissão parlamentar ad hoc. A Comissão analisou o material, convocou os polícias que realizaram a investigação e emitiu recomendações, tanto para o Ministério do Interior como para a Polícia (Civil.ge, 2018).
A supervisão parlamentar apresenta certas deficiências e desafios no que concerne à investigação da polícia. Em primeiro lugar, os deputados não podem dedicar totalmente o seu tempo e dedicação a questões relacionadas à supervisão da polícia. Ser membro de um comité parlamentar de supervisão da polícia é um dos vários deveres que os membros do parlamento detêm. Em segundo lugar, a maioria dos deputados não possui a experiência necessária para supervisionar efetivamente a polícia. Com a tecnologia, métodos de investigação da polícia e as normas formas de crime cada vez mais complicadas, é concebível que os deputados não consigam fazer as perguntas certas para supervisionar funções e atividades complexas da polícia. Em terceiro lugar, existe sempre um risco de os deputados usarem ferramentas, mecanismos e informações de supervisão obtidos por meio das suas atividades de supervisão, para promover a sua agenda política ou infligir danos elevados aos políticos rivais. Nesses casos, as nomeações dos chefes da polícia, inspeções e investigações parlamentares correm o risco de ser indevidamente politizados (Wills, 2010, p.42-43).
Supervisão por instituições independentes
As subsecções anteriores referem-se aos possíveis desafios que podem encontrar-se quando as denúncias de má conduta policial são investigadas internamente pela polícia ou pelos órgãos executivos e supervisionados pelo órgão judiciário e legislativo. É amplamente aceitável que a confiança na polícia, a qual se apresenta como um pré-requisito para um policiamento eficaz, diminui significativamente quando a população percebe que os abusos por parte da polícia não são investigados de forma eficaz (CoE, 2001, artigo 61 comentário; OSCE, 2009, para. 88; UNHRC, 2010; Tait, Frank e Ndung‘u, 2011, p. 1).
Assim sendo, nas últimas décadas, os instrumentos normativos internacionais têm enfatizado a necessidade de uma investigação efetiva e independente dos alegados crimes cometidos pela polícia, particularmente em casos de uso de força e execuções extrajudiciais, arbitrárias e sumárias (Princípios Básicos sobre o uso da Força e Armas de Fogo, Artigo 22.º, 1990; Princípios das Nações Unidas sobre Prevenção e Investigação Eficazes de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias, resolução do Conselho Económico e Social 1989/65, Princípios 9-10). O Tribunal Europeu de Direitos do Homem, através de uma série de decisões históricas, previu cinco princípios fundamentais necessários para uma investigação eficaz de queixas contra a polícia. De acordo com esses princípios, as investigações devem garantir a independência dos investigadores, ser capazes de reunir provas adequadas, provas essas que devem ser investigadas imediatamente após o incidente e permitir o escrutínio público e o envolvimento das vítimas no processo de investigação (CoE, 2009, p. 3).
Em reconhecimento destes princípios e padrões, representantes internacionais e regionais, como Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias e o Comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa pediram a criação de órgãos independentes de denúncia da polícia ('IPCB'). '), pois são mais adequados para conduzir investigações eficazes de denúncias policiais (CoE, 2009; UNHRC, 2010).
É certo que diversos países de todo o mundo, incluindo aqueles que têm um histórico de abuso policial, têm optado por usar o IPCB. Embora a composição e o mandato institucional varie de país para país, os IPCBs mais eficazes e bem sucedidos parecem ter os seguintes recursos (CoE, 2009; UNHRC, 2010; UNODC, 2011, p. 69-70):
Independência: Os IPCBs são institucional e hierarquicamente independentes dos órgãos de polícia e dos executivos (normalmente os que reportam ao governo), e têm o seu próprio orçamento definido pelo parlamento (UNHRC, 2010, para. 60). Os IPCBs são independentes, como por exemplo, são livres de decidir as prioridades de supervisão da polícia, bem como se devem ou não investigar as suas ações.
Mandato livre: Embora não exista um padrão internacional prescritivo sobre o escopo do mandato dos IPCBs, estes são mais eficazes quando as leis nacionais estabelecem um mandato livre, que não duplica o mandato de outras figuras externas de supervisão (como instituições de provedoria e / ou a instituição nacional de direitos humanos), e isso pode ser alcançado com os poderes e recursos que o IPCB possui. Nalguns países, os IPCBs são mandatados para investigar todas as queixas contra a polícia (criminais e disciplinares), enquanto noutros são mandatados apenas para investigar os delitos mais graves cometidos pela polícia (assassinatos, tortura, maus-tratos, corrupção de alto nível). Essa decisão geralmente depende do histórico de abuso policial no país e dos recursos disponíveis para o IPCB investigar as denúncias. Se os recursos do IPCB são limitados, normalmente concentram-se apenas na investigação dos crimes mais graves (UNHRC, 2010, parágrafo 49).
Poderes de investigação: A característica mais distintiva dos IPCBs consiste no fato de não dependerem de órgãos de polícia para o processo de investigação. Os IPCBs mais eficazes têm a sua própria equipa de investigadores, confiada a poderes de aplicação da lei, como acesso a informações, entrada, busca e apreensão, entrevista e intimação e, em casos extremos, prisão de suspeitos. Alguns IPCBs não têm os seus próprios investigadores, mas têm o poder de obrigar a polícia a cooperar e / ou a supervisionar a investigação das queixas.
Recursos: Para uma operação eficaz, os IPCBs precisam de um apoio financeiro, técnico (para angariar, guardar e analisar provas) e de recursos humanos substanciais, incluindo especialistas temáticos contratados temporariamente para certas investigações (UNHRC,2010, parágrafo. 46).
Acessibilidade e transparência: nenhum dos recursos acima mencionados seria relevante se os IPCBs não fossem conhecidos pelo público em geral e acessíveis às vítimas de abuso policial. Consequentemente, os IPCBs bem-sucedidos alcançam o público, especialmente os grupos mais vulneráveis. Além disso, os IPCBs têm o dever de ser transparentes sobre seu trabalho e investigações, de ganhar a confiança da população em relação ao seu papel de supervisão (UNHRC, 2010, parágrafos 63-64).
Num sistema de prestação de contas, o papel dos IPCBs é principalmente de natureza ex-post, investigando denúncias contra a polícia. Embora os processos de tratamento de denúncias dos IPCBs variem, dependendo dos seus mandatos e dos seus exatos poderes, o processo de denúncias geralmente ocorre da seguinte maneira:
- O IPCB recebe a denúncia diretamente do denunciante, ou através do encaminhamento do respetivo órgão de polícia.
- Se a denúncia estiver dentro do mandato do IPCB e se houver motivos suficientes para iniciar uma investigação, o IPCB iniciará o processo de investigação.
- Dependendo do seu mandato e poderes, o IPCB orienta a investigação de forma independente ou supervisiona ou coopera com a polícia para a investigação da denúncia.
- Após a conclusão da investigação, as conclusões da investigação são enviadas à polícia (por denúncias disciplinares) ou ao Ministério Público (por denúncias relacionadas à prática de crimes). A principal advertência para prestação de contas consiste no fato de se, após uma investigação independente do IPCB, se deverem estabelecer motivos para sanções disciplinares ou criminais, ser muito difícil para a polícia ou para o Ministério Público desconsiderar completamente as conclusões da investigação do IPCB para encobrir caso e não prosseguir com processo ou processos disciplinares.
- Alguns IPCBs também atuam como órgão de apelação, nos casos em que o denunciante e / ou o polícia acusado não estão satisfeitos com o resultado da investigação disciplinar ou com a sanção imposta.
- Os IPCBs publicam o resultado da investigação (geralmente uma versão mais concisa e redigida para proteger os direitos do suspeito e da vítima) na sua página oficial de internet, juntamente com recomendações para os polícias e outras agências estatais no sentido de evitarem essas más condutas ou crimes no futuro (Schierkolk, 2017).
Para além do procedimento de denúncias acima mencionado, alguns IPCBs são mandatados para monitorizações regulares e / ou para lançar revisões temáticas, por iniciativa própria, de controvérsias polémicas sem a existência de uma queixa.
Exemplos de IPCBs por países
A Police Ombudsman of Northern Ireland e a Danish Independent Police Complaints Authority são exemplos de IPCBs com um amplo mandato que investigam todas as denúncias criminais e disciplinares contra a polícia. O Independent Office for Police Conduct in England and Wales, o Independent Police Conduct Authority in New Zealand e o Law Enforcement Conduct Commission in Australia são IPCBs com mandato limitado, que só investigam os crimes e as más condutas mais graves. Para além dos exemplos acima mencionados, alguns IPCBs do mundo ou têm alguns ou todos os poderes para investigar, como o que acontece com a Jamaican Independent Commission of Investigations (INDECOM), África do Sul IPID, Enforcement Agency Integrity Commission na Malásia. O IPCB dinamarquês tem um poder excecional de tomar decisões vinculativas em investigações disciplinares, sendo essa decisão irrecorrível. A maioria dos outros IPCBs cumprem o procedimento regular que consiste em enviar os relatórios de investigação ou para a polícia, ou para o Ministério Público, para a determinação de sanções disciplinares ou criminais.
Embora o estabelecimento dos IPCBs tenha sido muito recomendado ao nível internacional, a capacidade dos IPCBs ficaria gravemente comprometida se não fossem de facto independentes da polícia e do Ministério Público, sem um mandato realístico e poderes de investigação apropriados, e se não lhes fossem facultados os recursos humanos e financeiros. A existência de um IPCB que, por si só, eleva a expetativa pública face à responsabilidade policial, mas que seja desadequado e que na prática não funcione efetivamente, poderá causar mais danos do que não existindo uma instituição do género.
É também importante ter em conta que os IPCBs não são as únicas instituições de supervisão independentes existentes no sistema de responsabilidade policial. As provedorias, as instituições nacionais de direitos humanos, as comissões anticorrupção, e as agências de auditoria independentes são exemplos de órgãos independentes. Estes institutos normalmente enviam relatórios ao Parlamento e monitorizam os vários aspetos de aplicabilidade da lei, dependendo dos seus mandatos e poderes.
Supervisão pela sociedade civil e pelos meios de comunicação social
A sociedade e os meios de comunicação social detêm um papel auxiliar, mas essencial, no que se refere ao sistema de responsabilidade policial. As funções de supervisão são mais indiretas do que as dos órgãos judiciários, parlamento e mecanismo de supervisão independentes, visto que não têm um mandato formal que os autorize a examinar ou mesmo a investigar as ações da polícia. No entanto, a sociedade e os meios de comunicação social são os ‘’vigilantes’’ e a ligação entre a responsabilidade policial e a opinião pública.
Sociedade civil
As organizações sociais contribuem para a responsabilidade civil em diferentes aspetos em três formas de supervisão:
Supervisão ex-ante |
Supervisão contínua |
Supervisão ex-post |
Nos países onde existe uma tradição de elaborar normas inclusivas e participativas, os sindicatos e as comissões parlamentares convidam formalmente as ONG’s especializadas em policiamento para darem a sua opinião profissional, numa fase inicial de elaboração da lei e normas. Neste contexto, as ONG’s são uma fonte de influência no desenvolvimento de normas e leis que estabeleçam procedimentos contra a polícia, em conformidade com os direitos humanos, bem como uma estrutura abrangente de responsabilização por má conduta. |
As ONG’s monitorizam a polícia, continuamente, através de fontes abertas. Recolhem e analisam dados sobre diversas práticas de policiamento, perceções da população sobre a polícia, denuncias contra a polícia e os seus resultados. As ONG’s disseminam essas informações ao público em geral de diversas formas, nomeadamente através de documentos oficiais, conferências e campanhas de defesa, com o objetivo de trazer os principais problemas e desafios relacionados com a responsabilidade da polícia para o debate de opinião pública. Embora as ONG’s não consigam lidar diretamente com esses desafios, as mesmas podem colocar profissionais de supervisão e cooperar com eles nas investigações. |
Na sequência de um escândalo envolvendo abuso policial, ou parlamentos adotando leis que confiram poderes abrangentes à polícia, as ONG’s lideram o processo judicial, desafiando leis ou práticas problemáticas dos serviços policiais (EU FRA, 2017, p.69).
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Exemplos de supervisão pela sociedade
- Em 2016, o Reino Unido aprovou uma lei de atribuição de Poderes de Investigação, altamente controversa, na qual concedeu à polícia e às agências de inteligência poderes para aceder, controlar e alterar dispositivos eletrónicos como computadores, telemóveis, tabletes, a uma escala industrial, ler mensagens, mensagens online e e-mails, ouvir chamadas telefónicas em massa, sem que houvesse suspeita de atividade ilícita. Como resposta, a Liberty UK, uma organização que defende os direitos humanos, enfrentou o Governo do Reino Unido perante o Tribunal de Última Instância. O tribunal decidiu que parte da lei seria ilegal e obrigou o Governo a corrigi-la (Liberty UK, 2018).
- Nos Balcãs Ocidentais, as ONG’s dedicam-se à supervisão da integridade da polícia e estabeleceram uma rede regional denominada ‘Point Pulse- Western Balkans Pulse for Police Integrity and Trust’, tendo como objetivo monitorizar a integridade das agências polícias e apelar a mudanças de políticas que impeçam a corrupção no seio da polícia. As ONG’s membros desta rede de monitorização de condutas da integridade da polícia dos seus respetivos países, levam a cabo inquéritos públicos sobre a confiança que a população deposita na polícia, e recomendações para mudanças das políticas. A plataforma regional publica os resultados da pesquisa, as descobertas e os resultados de ONG’s, de outros sete países. As atividades conjuntas dos membros das ONG’s permitem uma troca de desafios e de lições, em todos os países, e analisam as tendências da polícia ao nível regional (Point Pulse, n.d).
Os meios de comunicação social
Quer a atividade da polícia quer o trabalho crucial dos profissionais de supervisão acima mencionados, seriam amplamente desconhecidos para a população em geral, não fora a atuação dos meios de comunicação social. O papel dos meios de comunicação social, no que se refere à responsabilidade da polícia, vai para além das reportagens. Contribuem para a responsabilidade policial nos seguintes termos:
- Acesso aos registos dos governos e da polícia e publicação de informações sobre os regulamentos e normas de aplicação da lei, como também das estatísticas respeitantes às atividades policiais, enaltecendo assim a sua transparência;
- Assistir a debates parlamentares e a decisões dos tribunais em casos que envolvam agentes da polícia, para dar a conhecer ao público os mecanismos de responsabilização;
- Cooperar com organizações da sociedade civil, Ombudsman e outras figuras representativas de supervisão com vista a alertar em campanhas sobre implicações dos direitos humanos no policiamento; e
- Realizar uma investigação jornalística com o intuito de descobrir violações de direitos humanos, más condutas, corrupção na polícia (Friedrich, Masson, McAndrew, 2012, parágrafo 36).
A última função é particularmente crucial para esclarecer os abusos da polícia e as questões sistemáticas que governam na polícia, bem como para iniciar um debate público sobre estes tópicos.
Os pontos acima mencionados podem ser considerados como a função tradicional dos meios de comunicação social convencional na supervisão da polícia. No entanto, o surgimento das media trouxe uma nova dimensão para o debate da media e responsabilidade policial. O uso generalizado das plataformas online, e a partilha de filmagens de vídeo de abuso policial (quer se trate de filmagens de espetadores, testemunhas ou até mesmo das próprias vítimas, quer da divulgação de imagens de câmaras de videovigilância) costumam chamar a atenção do público para um incidente, num curto espaço de tempo. Isso faz com que o incidente seja detetado pelos meios de comunicação social convencionais, além de órgãos de denúncia e supervisão. A título exemplificativo, Walter Scott, um homem desarmado que fugia da polícia nos Estados Unidos, foi morto a tiro pela polícia, que então colocou uma arma no corpo da vítima e informou os colegas por rádio que o homem tinha tentado pegar na arma. No entanto, todo o incidente foi filmado por um transeunte e foi publicado nas redes sociais. Após a divulgação do vídeo, a esquadra da polícia deteve o agente em causa, mostrou apoio à acusação e demitiu-o. Mais tarde, o polícia em causa foi condenado a 20 anos de prisão (Zuckerman, 2016; Blinder, 2017). Este exemplo ilustra o potencial das redes sociais e outras formas de media, para garantir que as ações apropriadas sejam tomadas.
Tópicos a debater: Considerações éticas e legais das reportagens da media sobre abuso policial
Existem muitos riscos e considerações éticas associadas às investigações dos media e ao relatar as ações policiais e potenciais abusos. Em primeiro lugar, num eventual incidente, enquanto decorrem investigações internas e externas, as reportagens da media deve ser cuidadosas para não violarem a presunção de inocência do agente da polícia em causa. Em segundo lugar, relatar um incidente pode representar o risco de violar a privacidade da vítima e dos seus familiares. Dada a capacidade significativa dos media no sentido de influenciarem a opinião pública, tais preocupações levantam questões sobre a necessidade de se desenvolver diretrizes éticas para investigar e relatar incidentes policiais. O Módulo 10, sobre a integridade dos media e éticas de E4J, da Série de Módulos Universitários sobre Integridade e Ética, fornece mais informação sobre os meios de comunicação social e a ética, em termos gerais.
Para além das considerações éticas, os jornalistas e organizações dos meios de comunicação social, em todo o mundo, enfrentam vários desafios na supervisão da polícia. Entre os principais desafios legais, temos as leis que restringem o acesso à informação e criminalizam a atividade jornalística. A maioria dos países possui leis de classificação de informações, para proteger os interesses de segurança nacional. No entanto, se essas leis não estiverem de acordo com os padrões internacionais, os governos e suas agências podem inclinar-se a classificar informações em excesso ou a impor outras barreiras desnecessárias, o que pode comprometer o papel dos media. Os meios de comunicação social podem hesitar em realizar investigações jornalísticas, sobre questões relacionadas ao policiamento, nos casos em que existam leis e práticas que criminalizam a publicação de informações, onde os jornalistas sejam obrigados a revelar as suas fontes confidenciais, ou quando os jornalistas não recebam salvaguardas contra vigilância intrusiva.
Exemplos de supervisão dos meios de comunicação social
O Projeto de Denúncia de Crime Organizado e Corrupção (OCCRP) é uma plataforma de denúncia investigativa, formada por 40 centros de investigação sem fins lucrativos, dezenas de jornalistas e várias grandes organizações regionais de notícias de todo o mundo. A rede cobre a Europa, a África, a Ásia e a América Latina. Foi criado em 2006 e, desde então, realiza relatórios de investigação transnacionais e promove abordagens baseadas em tecnologia com vista a expor o crime organizado e a corrupção em todo o mundo. A título exemplificativo, na Sérvia, cinco chefes de polícia, incluindo o chefe da polícia criminal, foram demitidos depois das suas conexões com um traficante terem sido reveladas por investigações conjuntas, realizadas pelos media locais e pelo OCCPR (Dojčinovic e Jovanović, 2014).
Monitorização por instituições internacionais
As instituições internacionais também desempenham um papel importante na promoção da responsabilidade policial ao nível nacional. Além das decisões de alguns tribunais regionais (como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ou o Tribunal Inter-Americano dos Direitos Humanos), que têm efeito vinculativo, a maioria das instituições internacionais não têm poderes para influenciar diretamente leis, políticas e práticas. No entanto, os Órgãos de Monitorização do Tratado das Nações Unidas e os Relatores Especiais desempenham um papel importante no fomento da responsabilidade da polícia por meio da definição de normas, visitas oficiais a países (especialmente a inspeção das instalações de detenção), mecanismos de denúncias individuais e ações urgentes e apoio às capacidades das instituições locais de supervisão (ver, por exemplo, e em relação a crianças em conflito com a lei, Van Keirsbilck e Grandfils, 2017).
Esta secção ofereceu uma visão geral das instituições e dos mecanismos de supervisão que garantem a responsabilidade da polícia. Não há dúvida de que esses mecanismos podem funcionar de maneira mais eficaz nas sociedades democráticas, onde existe uma cultura estabelecida de transparência e responsabilidade, uma tradição de elaboração de políticas participativas e inclusiva, bem como disposições constitucionais com vista a salvaguardar os direitos humanos, onde existe, igualmente, uma estrutura jurídica e institucional robusta, estabelecendo o papel, os poderes e as funções dos atores de supervisão e os recursos para as instituições de supervisão desempenharem suas funções de maneira eficaz. No entanto, não existe um país que possua todas as características mencionadas e em que todas as instituições e mecanismos de supervisão funcionem perfeitamente. É por isso que esta secção se referiu a desafios com relação a cada instituto de supervisão.
As sociedades, em todo o mundo, continuam a suportar os efeitos de regimes onde a corrupção se revela como sendo desenfreada, o Estado de Direito está comprometido e onde não há vontade política suficiente, capacidade institucional, experiência e recursos para responsabilizar a polícia. No entanto, isso não significa que o direito internacional dos direitos humanos, os padrões de responsabilidade e os exemplos de boas práticas em todo o mundo não sejam relevantes. Pelo contrário, em tais contextos é crucial promover padrões internacionais e regionais, ilustrar como os países em transição para a democracia em outras partes do mundo reformaram suas estruturas de responsabilidade e estabeleceram mecanismos de supervisão policial, bem como envolver os alunos na discussão de pré-condições, para que esses institutos de supervisão sejam eficazes nos seus países. Ao fazer isso, também é importante destacar que nenhum país alcançou "mecanismos eficazes de responsabilização, integridade e supervisão da polícia" da noite para o dia. E ainda que, à medida que o policiamento evolui e continuará a evoluir no futuro, devido a novos desenvolvimentos de segurança e sociopolíticos, os mecanismos e os institutos de supervisão policial precisarão ser revistos e avaliados.
Seguinte: Tópico três – Questões transversais e contemporâneas sobre a responsabilidade da polícia
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