Este módulo é um recurso para professores 

 

Respostas à corrupção no setor privado

 

Devido ao seu considerável impacto societário, o combate contra a corrupção no setor privado ganhou força no direito e nas políticas internacionais das últimas décadas. Uma das mais significativas mudanças na legislação anticorrupção que afeta o setor privado foi a promulgação, em 1977, do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) nos Estados Unidos da América. Dado o seu âmbito de aplicação extraterritorial, o FCPA pode aplicar-se a empresas de todo o mundo. O impacto que o FCPA teve na atividade internacional das empresas levou vários países a criar legislação similar contra o suborno. Por exemplo, em 2013, o Reino Unido adotou o UK Bribery Act, o qual possuía um âmbito de aplicação extraterritorial (tanto o FCPA, como o UK Bribery Act são discutidos no Módulo 12 e no Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). No contexto internacional, nos finais da década de 90, um consenso internacional emergiu relativamente à responsabilidade das pessoas coletivas (i.e. das empresas) no que respeita a atos de corrupção. Dois eventos importantes devem ser mencionados. Em primeiro lugar, em 1994, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) estabeleceu o Grupo de Trabalho sobre o Suborno nas Transações Comerciais Internacionais, que conduziu à adoção, em 1977, da Convenção sobre a Luta contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros nas Transações Comerciais Internacionais. Em segundo lugar, em 2003, a comunidade internacional adotou a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC) que, no seu artigo 26.º, incumbe os Estados-parte de responsabilizar as pessoas coletivas pelos atos de corrupção cometidos. A UNCAC também estabelece certas normas que se aplicam especificamente à corrupção no setor privado. A criminalização da corrupção no setor privado e a garantia de que as empresas podem ser responsabilizadas pela mesma e sancionadas – ao abrigo do direito civil ou penal – visa prosseguir tanto objetivos de retribuição e dissuasão, na medida em que a mala praxis empresarial é punida e a justiça feita, o que envia uma mensagem a todas as empresas de que não devem envolver-se em tais práticas. Além disso, estas respostas à corrupção empresarial podem incentivar as empresas a desenvolver medidas e sistemas de prevenção e combate à corrupção, como programas de ética e de compliance, códigos de ética, avaliação do risco, e procedimentos de diligência devida para o escrutínio de parceiros negociais. Estas medidas são discutidas abaixo. Após a discussão sobre criminalização, responsabilidade e sanções relacionadas com a corrupção empresarial, o Módulo abordará medidas de prevenção de corrupção nas empresas.

 

Criminalizar a corrupção no setor privado

A principal resposta à corrupção no setor privado é a aplicação de normas penais anticorrupção às empresas, e a sua efetivação através de sanções e incentivos. Por exemplo, a UNCAC define os crimes de suborno e de peculato no setor privado, bem como os crimes relacionados com a ocultação dos mesmos, lavagem de produtos e receitas que deles resultam ou obstrução da justiça em seu nome. A Convenção Anti-suborno da OCDE, por outro lado, foca-se no crime de suborno em atividades empresariais internacionais e estabelece a responsabilidade das pessoas coletivas a esse respeito. A aplicação e efetivação destas normas – desde a deteção e denúncia da corrupção, à investigação, acusação e julgamento – são discutidas nos Módulo 6 e no Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção. Enquanto esses Módulos discutem as medidas de efetivação em geral, o presente Módulo clarifica as particularidades da sua aplicação às empresas. 

O direito penal associa-se maioritariamente à responsabilidade criminal individual e, por isso, normalmente aplica-se às pessoas singulares (indivíduos) e não às pessoas coletivas. Para efetivar as normas anticorrupção de forma eficaz em contexto empresarial, os Estados necessitam de incorporar a noção de “responsabilidade das pessoas coletivas” nos seus ordenamentos jurídicos. A responsabilidade das pessoas coletivas, um conceito que é discutido abaixo de forma mais detalhada, abre as portas à imposição de sanções a empresas que violam as normas anticorrupção. Tais sanções podem ser multas, confisco de bens, resolução, suspensão ou exclusão de contratos, perda de lucros, e responsabilidade pelos danos causados. Uma discussão em torno do alcance das sanções e incentivos desenvolvidos para a prevenção e combate à corrupção no setor privado está disponível na publicação do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) intitulada Um Guia dos Recursos sobre Medidas do Estado para o Fortalecimento da Integridade Empresarial. Dado o âmbito limitado deste Módulo, a discussão que se segue apenas se foca numa destas sanções, a suspensão e exclusão de contratos, que os Estados e as organizações internacionais estão a utilizar crescentemente para combater a corrupção. Quando as pessoas singulares violam a lei penal de forma séria, podem ser presas. Como a pena de prisão só pode ser aplicada a indivíduos, a suspensão ou exclusão podem ser um impedimento comparável para as empresas, especialmente se as mesmas e a sua atividade dependerem da celebração de contratos com o Estado.

 

Responsabilidade das pessoas coletivas

Historicamente, as empresas encontravam-se fora do âmbito de aplicação do direito penal, o qual se concentrou na responsabilidade individual e nas noções de culpabilidade e culpa. A legislação anticorrupção foi, portanto, direcionada a pessoas físicas e, principalmente, a funcionários públicos envolvidos em atos de suborno ou de apropriação indevida de fundos públicos e a indivíduos que ofereciam subornos – embora estes últimos fossem tratados de forma bem mais leve. Recentemente, porém, o debate sobre como se poderá fazer com que as empresas cumpram as normas nacionais e internacionais anticorrupção intensificou-se. A maioria das grandes investigações de corrupção dizem respeito a pessoas coletivas e não a pessoas singulares. A responsabilidade das pessoas coletivas, como é o caso das empresas, também é conhecida por “responsabilidade corporativa” e é um meio essencial para o combate à corrupção à escala global (Lee-Jones, 2018).

A responsabilidade empresarial foi introduzida, em parte, porque os mecanismos jurídicos tradicionais, como a responsabilidade penal das pessoas singulares, se revelaram insuficientes para conter a criminalidade. As estruturas empresariais descentralizadas e processos de tomada de decisão complexos tornam mais difícil identificar os agentes individuais do crime. Em muitos casos de corrupção no setor empresarial, os administradores e gestores podem não participar diretamente no comportamento corrupto, mas, ainda assim, o seu comportamento assume relevo porque estes não supervisionaram eficazmente os seus funcionários ou por terem incentivado o comportamento que os leva a praticar os crimes. Estudos de casos envolvendo grandes empresas revelam que a administração e gerência podem ter criado ou cultivado uma cultura empresarial que incentiva ao crime pelos funcionários mais jovens. Nessa situação, a administração e gerência podem ter responsabilidade moral. É, porém, difícil acusar gerentes ou administradores a título individual, especialmente considerando a própria natureza da empresa e os extensivos sistemas de delegação. Para uma análise de casos contemporâneos que ilustram como a delegação e a responsabilidade são abordadas em empresas como a General Motors, BP e Wells Fargo, vide Buell (2018).

A responsabilidade das pessoas coletivas pode ser objetiva ou subjetiva. A responsabilidade objetiva, também conhecida como responsabilidade em sentido estrito ou vicarial, imputa à empresa qualquer irregularidade cometida pelos seus funcionários no exercício das suas funções. Assim que um funcionário comete um crime, a empresa também é responsabilizada. Por conseguinte, um sistema puro de responsabilidade objetiva encoraja a implementação de políticas de prevenção, mas desincentiva a autodenúncia do crime e a cooperação com as autoridades durante a investigação.

A responsabilidade subjetiva, também conhecida como responsabilidade baseada na culpa, impõe um dever às empresas de prevenir o crime através da educação dos funcionários e da implementação de controlos internos às suas atividades. Os sistemas puros de responsabilidade subjetiva perdoam as empresas que cumpriram com as suas obrigações, as quais são normalmente definidas pela lei, como a implementação de programas eficazes de compliance. Os sistemas de responsabilidade subjetiva também apresentam riscos: como as empresas se limitam a cumprir requisitos previstos na lei que definem o que é um sistema eficaz de compliance, as medidas podem existir na teoria, mas não na prática. Além disso, não há incentivos para o alinhamento de políticas cruciais com o sistema de compliance, p.e. de compensação, promoção e bónus. Para uma discussão relativa à relação entre dever, ética e integridade, vide o Módulo 1 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Integridade e Ética.

Os diplomas jurídicos de índole global, como a UNCAC, não optam por um tipo específico de responsabilidade; a tendência é de que se adotem sistemas mistos de responsabilidade. Num número cada vez maior de jurisdições, as empresas podem receber multas mais baixas se provarem que levaram a cabo esforços significativos para prevenir a corrupção, por exemplo através da implementação de controlos e procedimentos internos eficazes, da educação e formação dos funcionários, e da prevenção de condutas fraudulentas por terceiros que atuam a favor da empresa. Em algumas jurisdições, como a Austrália, a Hungria e a Eslovénia, a autodenúncia e a cooperação com as autoridades durante a investigação podem reduzir as penas aplicadas. Para uma análise de como cada jurisdição da OCDE regula a responsabilidade das pessoas coletivas por atos de corrupção, vide OCDE (2016).

 

Suspensão e exclusão

A exclusão da contratação é um importante mecanismo regulatório contra a corrupção. As políticas de exclusão podem eliminar certos fornecedores e partes de contratos lucrativos devido ao seu envolvimento em atos de corrupção ou pouco éticos (Acorn, 2016). A exclusão pode ser levada a cabo de múltiplas formas. No Canadá, por exemplo, existe um sistema de exclusão “baseado em regras e automático”. Nos Estados Unidos da América, a abordagem é muito mais discricionária, focando-se na “responsabilidade presente” (Acorn, 2016, p. 1)

Num plano internacional, o sistema de suspensão e exclusão do Banco Mundial, supervisionado pelo Gabinete de Suspensão e Exclusão, é uma defesa considerável contra os transgressores (World Bank, 2015). O sistema sanciona práticas corruptas, fraudulentas, de conluio, coercitivas e de obstrução (vide World Bank, 2015, para definições completas). Há cinco sanções diferentes que podem ser impostas: exclusão com libertação condicional; um período fixo de exclusão sem libertação condicional; não-exclusão condicional; carta pública de reprimenda e restituição. O Banco Mundial avalia os fatores atenuantes ou agravantes quando determina qual das cinco potenciais sanções irá aplicar (World Bank, 2015).

Como a pena de prisão só pode ser aplicada a indivíduos, a suspensão ou exclusão podem ser um impedimento comparável para as empresas, especialmente se as mesmas e a sua atividade dependerem da celebração de contratos com o Estado. As empresas podem, igualmente, ser obrigadas a demitir funcionários como condição de regularização. Embora esta não seja, do ponto de vista técnico, uma sanção estadual, pode ser uma forma eficaz de dissuadir os indivíduos, particularmente os administradores e gerentes e os funcionários mais antigos que têm dificuldades em encontrar alternativas comparáveis de emprego. Os administradores e funcionários de uma organização devem compreender, como parte da sua formação anticorrupção, que o suborno não é apenas prejudicial a todos os detentores de interesses, mas um crime que pode conduzir à resolução dos seus contratos de trabalho (uma “política de tolerância zero”).

 
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