Este módulo é um recurso para professores
Corrupção na contratação pública
Uma das atividades governamentais mais propensas à corrupção é a contratação pública. As razões para que tal aconteça incluem “o volume de transações e de interesses financeiros em jogo”, bem como a “complexidade do processo, a interação estreita entre os funcionários públicos e as empresas, bem como a multiplicidade de detentores de interesses” (OECD, 2016). Em alguns países, os abusos do governo na realização de despesa tornaram-se a “porta de entrada para a fortuna” (Salisu, 2000). A corrupção na contratação pública pode ser um problema tanto para os países desenvolvidos, como para os países em desenvolvimento, embora algumas formas de corrupção sejam mais prevalecentes em determinados países, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2013a). A OCDE (2014) destaca que 57% da totalidade de casos de suborno internacional se devem à corrupção no processo de contratação.
A corrupção nos contratos públicos assume muitas das formas supramencionadas, como o suborno, o peculato e o abuso de funções. Discutir esta temática em profundidade fornece, pois, exemplos concretos de como a corrupção se manifesta no setor público, de forma absolutamente impactante para a nossa vida quotidiana. Além disso, a corrupção na contratação pública merece ser considerada, pois apresenta causas e efeitos únicos. A corrupção na contratação pode surgir como resultado de uma situação de conflito de interesses em que um funcionário público deseja garantir para si ou para terceiros os benefícios que pertencem ao público, ignorando os requisitos formais subjacentes à concessão de tais vantagens. A contratação pública é uma área particularmente vulnerável à corrupção, por exemplo, em acordos para a fixação de preços, na manutenção de cartéis e outras práticas que afetam a concorrência e que impedem que o Estado receba valor pelo dinheiro envolvido no processo de contratação (Williams-Elegbe, 2012). Após definir contratação pública e o conceito relacionado de gestão financeira, utilizaremos exemplos de corrupção na contratação para ilustrar as causas, manifestações e consequências da corrupção no setor público e, de forma mais ampla, da corrupção na sociedade.
Contratação pública e gestão das finanças públicas
A contratação pública é o processo pelo qual o Estado adquire os bens, serviços e obras (construções) necessárias para funcionar e maximizar o bem-estar público. O sistema de contratação pública referido neste Módulo é o sistema global das compras governamentais, incluindo sistemas de orçamentação, governança, auditoria e prestação de contas. Além dos apoios e programas sociais, é uma das principais vias pelas quais os fundos públicos são gastos, e as grandes quantias de dinheiro envolvidas podem fornecer oportunidades para a prática de condutas antiéticas, como a fraude e a corrupção.
O processo de contratação compreende cinco fases, e os riscos de corrupção surgem em todas elas:
- Atividades de pré-seleção, envolvendo a avaliação de necessidades, formulação do concurso e elaboração do edital de chamada de propostas;
- Processo de abertura do concurso, incluindo a elaboração de especificações técnicas e critérios de seleção, divulgação pública do mesmo e submissão das propostas.
- Avaliação das propostas, compreendendo o processo de seleção da melhor proposta.
- Atividades pós-seleção, que incluem a gestão e execução dos contratos, transação de ativos, renegociação contratual e variações contratuais; e
- Manutenção e auditoria dos registos.
A contratação pública é responsável por uma quantidade significativa da despesa pública: a OCDE estima que os países gastam, em média, 13 a 20% do seu PIB na celebração de contratos (Transparência Internacional, 2014). As compras públicas geralmente estão sujeitas a ampla regulamentação legal e administrativa, com o objetivo de se proteger os fundos públicos e garantir que o dinheiro dos contribuintes é usado de forma criteriosa. O processo de contratação tem como principal objetivo a aquisição dos bens, serviços ou obras necessárias e ao melhor preço possível, geralmente, através da chamada “proposta economicamente mais vantajosa (MEAT)”. Também implica a consideração de vários fatores, como o preço, a qualidade, a funcionalidade, o ciclo de vida e os custos de eliminação, bem como o custo de prestação de serviços pós-venda, caso seja relevante.
O sistema de contratação é utilizado para se alcançarem vários objetivos de políticas públicas através da realização de despesa pública. São exemplos: incentivo da produção de bens ambientalmente sustentáveis; envolvimento de pequenas empresas, minorias e grupos desfavorecidos nas atividades económicas, celebrando uma parte dos contratos públicos com pessoas pertencentes a grupos específicos (Arrowsmith e Kunzlik, 2009); promoção do respeito pelos direitos humanos, garantindo que as empresas com as quais contratam respeitam os direitos humanos e que as suas cadeias de produção estão livres da escravatura moderna (Martin-Ortega e O’Brien, 2019). A contratação é igualmente utilizada para objetivos militares e de segurança nacional. Para maiores desenvolvimentos, vide o Módulo 11 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção.
O sistema de contratação pública é parte integrante de um sistema mais amplo de gestão das finanças públicas (PFM) e falha ou é bem sucedido consoante a força desse sistema. Como explicado no website da Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (NORAD): “O PFM inclui todos os componentes do processo de elaboração do orçamento de um país – tanto a montante (incluindo o planeamento estratégico, o planeamento de despesas a médio prazo, a elaboração anual do orçamento nacional), como a jusante (incluindo a gestão das receitas e das compras, o controlo, a contabilidade, os relatórios, a monitorização e avaliação, auditorias e supervisão)”. Um bom sistema de PFM garante que o setor público possa desempenhar o seu papel; aumenta a qualidade dos serviços públicos; constrói confiança da população no setor público; assegura o uso eficiente e eficaz dos fundos públicos. Um bom PFM também promove uma concorrência justa e transparente e previne os acordos e a influência de cartéis. Assim, estabelecer um adequado sistema de PFM é uma medida crucial para a mitigação dos riscos de corrupção no quadro da despesa pública.
Os impactos da corrupção na contratação pública
A corrupção na contratação pública acarreta todos os impactos negativos da corrupção em geral. Tanzi (1998) assevera que os custos económicos e sociais negativos das ações corruptas, em termos de desperdício de recursos, ineficiência e de oportunidades perdidas, são sempre maiores do que os benefícios que podem ser obtidos com tais ações. Em última análise, tal reduz a confiança da população no governo e corrói a integridade pública necessária para promover o interesse público (consulte o Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Integridade e Ética). Por exemplo, durante a organização dos jogos da Commonwealth de 2010, a Índia enfrentou vários problemas relacionados com a contratação, como baixa concorrência e falta de propostas, o que conduziu a atrasos significativos e a custos mais elevados para a aquisição de bens com qualidade inferior à esperada (UNODC, 2013b). No contexto da contratação, um estudo requerido pelo Escritório Europeu de Luta Anti-fraude (OLAF) revelou que, na União Europeia, as perdas diretas decorrentes da corrupção no setor da contratação pública podem chegar a 18% dos custos dos projetos (PwC, 2013). Além de perdas financeiras diretas e do aumento dos custos dos contratos públicos (Rose-Ackerman e Palifka, 2016), a corrupção na contratação pode causar danos variados aos cidadãos e aos setores público e privado.
Para minimizar os impactos negativos da corrupção na contratação, o artigo 9.º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção requer que os Estados-parte “efectu[em] as diligências necessárias para introduzir sistemas adequados de contratação assentes na transparência, na concorrência e em critérios objectivos para a tomada de decisões que sejam eficazes, designadamente, na prevenção da corrupção”. O artigo 9.º também exige transparência e prestação de contas na gestão das finanças públicas, nomeadamente nos procedimentos para a adoção do orçamento nacional, na informação sobre as receitas e despesas públicas, na contabilidade e auditoria, bem como na supervisão e gestão do risco.
Causas da corrupção na contratação pública
Em geral, todos os factores que contribuem para a corrupção no setor público podem ser considerados, igualmente, no campo da contratação. No entanto, a contratação pública é um campo especialmente vulnerável à corrupção por certas razões específicas.
A primeira são as quantias potencialmente elevadas de fundos e recursos envolvidas e o grande volume de contratos celebrados. De acordo com Ferguson (2018), os projetos concretizados com recurso à contratação pública representam até 50% dos gastos anuais dos Estados em todo o mundo. Alguns dos maiores esquemas documentados de corrupção ocorrem neste setor. A operação “Lava Jato” (o caso Odebrecht) foi descrita pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América como “o maior caso de suborno estrangeiro na história”. Este caso envolveu funcionários de mais de doze países e levou à acusação e condenação de vários funcionários de empresas (Lessa, 2017). Outro exemplo é o caso Alstom, em que o diretor da empresa francesa de engenharia Alstom foi condenado por tentativas de suborno a funcionários públicos lituanos para garantir a celebração de um contrato.
Em segundo lugar, os departamentos governamentais responsáveis pela contratação, também chamados de entidades adjudicantes, não têm uma natureza empresarial. Estes tendem a concentrar-se em empreendimentos não empresariais e podem não ter sistemas aptos a responder ao risco de corrupção inerente à natureza empresarial do projeto na base da contratação. Por fim, devido à discricionariedade que lhes é reconhecida na elaboração dos critérios de avaliação das propostas, um funcionário pode exercer indevidamente o seu poder decisório para determinar quais as empresas a convidar para a apresentação de propostas, projetando critérios de avaliação que favoreçam as mesmas ou manipulando o procedimento para se adjudicar o contrato a uma empresa da sua preferência (Soreide, 2002). Um funcionário público também pode dividir um contrato em vários contratos mais pequenos para contornar regras que exigem publicidade e transparência na celebração de contratos mais avultados (Williams-Elegbe, 2012). As empresas privadas podem não produzir ou apresentar documentos necessários para o processo de contratação, ou cometer fraude (por exemplo, através da apresentação de faturas falsas) quando se relacionam com o setor público com a cumplicidade dos funcionários públicos (OECD, 2016), ou obter informações confidenciais sobre o concurso ou sobre os demais concorrentes (Soreide 2002).
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