Este módulo é um recurso para professores
Tópico um – O policiamento nas democracias e a necessidade de prestação de contas, integridade, supervisão
As origens conceptuais e a evolução do papel da polícia na sociedade
Por que motivo as sociedades necessitavam de uma força policial? De que modo surgiu o conceito de “policiamento”? O que explica que as sociedades tenham concedido amplos poderes à polícia, restringindo desse modo os seus próprios direitos e liberdades? Estas questões são há muito exploradas nas áreas da ciência política, da sociologia e da criminologia. O “contrato social”, um dos conceitos mais influentes no estudo da ética e da política, conforme teorizado por Hobbes, Locke e Rousseau, oferece uma estrutura útil com vista a compreender a relação única entre a polícia e a sociedade. Em suma, esta teoria sugere que, para escapar de um “estado da natureza” marcado pela anarquia, medo e insegurança constantes, as sociedades terão celebrado um “contrato social”, através do qual os indivíduos concordaram em ceder voluntariamente certos direitos e liberdades a uma autoridade superior a qual, por sua vez, garantiria segurança a todos. Com vista a alcançar um tal desiderato, as sociedades concordaram em viver juntas, sob regras comuns, e a estabelecer um mecanismo dotado de poderes de execução, com vista a manter as regras que fazem parte do contrato social (Elahi, 2005). Pode dizer-se que, justamente, a necessidade de se estabelecer um mecanismo de execução, constitui a base conceitual do policiamento.
Contudo, a renúncia a certos direitos e liberdades individuais em troca de segurança, bem como a concessão do uso da força à polícia e a outros poderes de execução, acabaram por suscitar questões adicionais, como as que se seguem. Como podem as sociedades garantir que a polícia use a força para oferecer segurança e ordem a todos e, simultaneamente, impedir que a polícia sucumba à tentação de usar ilegitimamente esses mesmos poderes (Dunham e Alpert, 2015)? De que modo determinam as sociedades a extensão dos poderes conferidos à polícia e decidem que aspetos da sociedade e da vida social exigem policiamento? Questões como estas surgem em todo o mundo e não se encontram repostas fáceis às mesmas.
Ao longo dos séculos, as sociedades e os Estados definiram o papel, os poderes e os deveres da polícia, os quais foram variando consoante o respetivo contexto histórico e sociopolítico, as circunstâncias de segurança, a estrutura administrativa e as tradições de governo.
Além disso, as tarefas atribuídas à polícia não eram igualmente imunes aos desenvolvimentos sociopolíticos verificados historicamente. Nalguns Estados, floresceram estratégias policiais secretas e opressivas, ao longo dos séculos XVIII e XIX. A título exemplificativo, as funções policiais na Prússia foram muito para além das funções tradicionais desempenhadas pela polícia em ordenamentos jurídicos de common law. À polícia foi outorgado o poder de enquadrar regras e portarias que regulam a conduta dos cidadãos, bem como poderes limitados para punir indivíduos (Gale, 2006). Para mais desenvolvimentos, Casey-Maslen e Connolly (2017) fornecem uma visão geral mais detalhada, sobre a evolução histórica do policiamento na Europa e nos Estados Unidos.
Em suma, ao longo dos séculos XVI a XIX, o desenvolvimento, a organização e as tarefas da polícia foram significativamente influenciados pelas tradições de governo, pelos desenvolvimentos sociopolíticos e por motivos de poderes decisórios. No entanto, a partir de meados dos anos 1800, o conceito de policiamento profissional moderno começou a desenvolver-se. O estabelecimento da Polícia Metropolitana de Londres em 1829 é considerado um avanço no policiamento moderno. A Polícia Metropolitana foi fundada nos princípios de policiamento desenvolvidos por Sir Robert Peel, que é considerado o “pai” do policiamento moderno. Os Princípios de Peel definiram a missão policial como “prevenção do crime e da desordem” e destacaram a importância de um “serviço imparcial em prol da lei”, “garantir a cooperação do público” e restringir o uso da força. Embora não tenham influência universal, os Princípios de Peel inspiraram o desenvolvimento do policiamento em muitos Estados, incluindo nos EUA e nos países da Commonwealth Britânica, sendo uma forma de policiamento, por vezes descrita, de "policiamento por consentimento" (ver, por exemplo, Jackson, et al. 2012).
Para além dos Princípios de Peel, o policiamento moderno também se encontra marcado pela profissionalização da polícia. Embora não exista uma definição padrão de “profissionalização policial”, esta é geralmente caracterizada pelo recrutamento em conformidade com padrões específicos, incluindo remuneração com vista a criar um serviço de carreira, treino formal baseado em códigos padronizados e supervisão sistémica por parte dos superiores, todos no contexto de uma estrutura de comando claramente estabelecida (Bayley, 1985, p. 47).
A partir de meados do século XIX e um pouco por todo do mundo, os países passaram a adotar, mais frequentemente, abordagens modernas e profissionais quanto ao policiamento. Embora os papéis, deveres e poderes específicos da polícia variassem consoante as jurisdições, a polícia geralmente era tida como uma força de segurança do Estado, encarregue de fazer cumprir a lei, prevenir e controlar o crime e manter a ordem pública. Um tal entendimento tradicional e bastante restrito da polícia, sustentava que esta era apenas uma “força” do Estado, a quem tinham sido conferidos poderes para levar ao cumprimento da lei, bem como para prevenir e combater crimes.
Contudo, nas últimas décadas as sociedades democráticas redefiniram o papel e os poderes da polícia no seio da sociedade. O desenvolvimento do consenso internacional sobre a questão dos direitos humanos universais, assim como a ampla adoção de instrumentos internacionais sobre os direitos humanos, tais como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (“PIDCP”) (Resolução GA 2200A (XXI) e a Convenção Internacional para a Eliminação de Todos Formas de Discriminação Racial (Resolução GA 2106 (XX)), que legalmente obrigam os Estados a respeitar, proteger e cumprir um amplo leque de direitos humanos fundamentais, incluindo o direito à vida, o direito à liberdade e à segurança, à proibição da tortura e o direito à não discriminação, e que refletem a vontade coletiva no sentido de reconsiderar a aplicação da lei na ótica dos direitos humanos.
Neste contexto, o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 (Resolução 34/169 da GA), tem-se revelado um instrumento essencial, fornecendo orientações normativas aos Estados, sobre o papel da polícia na sociedade.
Código de Conduta das Nações Unidas para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei
Artigo 1.º
Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem sempre cumprir o dever que a lei lhes impõe, servindo a comunidade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que a sua profissão requer.
Artigo 2.º
No cumprimento do dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos humanos de todas as pessoas.
Os artigos do Código marcam um afastamento significativo face a uma definição tradicional e restrita, em direção a um entendimento mais “baseado nos direitos humanos” dos agentes policiais, como sendo funcionários que “servem” a comunidade. Em termos práticos, uma abordagem do policiamento baseada nos direitos humanos acarreta obrigações no sentido de evitar que a polícia restrinja indevidamente o gozo dos direitos humanos (respeito), bem como que tome medidas razoáveis com vista a salvaguardar o exercício dos direitos humanos (proteger) e leve a cabo ações positivas para facilitar o gozo dos direitos humanos (cumprir). A título exemplificativo, esta abordagem exige que os agentes policiais não restrinjam ilegalmente o direito à reunião de pessoas, tomem as medidas necessárias para proteger quem se encontra a organizar uma manifestação (por exemplo, contra possíveis contraprotestos) e adotem estratégias e políticas abrangentes (como, por exemplo, o contato com os organizadores do protesto ou o emprego de políticas de comunicação e negociação durante o protesto), para garantir que os manifestantes possam desfrutar plenamente do seu direito à reunião.
Porém, a abordagem do policiamento com base nos direitos humanos vai para além desta obrigação tripartida e inclui os princípios da participação, da responsabilidade, da não discriminação e da preocupação relativamente a situações de vulnerabilidade, conexões aos padrões de direitos humanos, acesso aos funcionários públicos e igualdade e sensibilidade face às questões de género (UNODC e OHCHR, 2017, p. 24).
Paralelamente ao desenvolvimento das abordagens respeitantes ao policiamento baseadas nos direitos humanos, a aplicação da lei nas sociedades democráticas tem sido cada vez mais definida como “policiamento democrático”. Embora o conceito tenha sido utilizado nos círculos académicos e políticos no final dos anos 90 (Marenin, 1998; Skolnick, 1999), o “policiamento democrático” alcançou o seu auge em termos de literatura e de pesquisa sobre policiamento com o relatório de David Bayley (2001), o qual apresentou os princípios fundamentais do policiamento democrático (p. 13):
- “A polícia deve dar prioridade operacional absoluta ao atendimento das necessidades dos cidadãos e grupos privados;
- A polícia deve sujeitar-se à lei e não ao governo;
- A polícia deve proteger os direitos humanos, especialmente aqueles que são necessários para o tipo de atividade política incondicional que é a marca da democracia;
- A polícia deve ser transparente nas suas atividades”
Colocando em prática estes princípios, as organizações internacionais e regionais foram definindo com maior acuidade os principais objetivos dos serviços policiais democráticos, tais como o de “manter a tranquilidade pública, a lei e a ordem, proteger e respeitar os direitos e liberdades fundamentais do indivíduo, prevenir e combater o crime, assim como prestar assistência e serviços ao público” (CoE, 2001; OSCE, 2009). Ao solicitar o estabelecimento de mecanismos nacionais de supervisão e prestação de contas no setor de segurança, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) afirma um compromisso assente em princípios semelhantes.
Os Estados Membros devem adjudicar recursos humanos, materiais e financeiros para criar e apoiar as instituições nacionais que defenderão princípios-chave de governança democrática, respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito no seio do setor da segurança (ECOWAS, 2017, para. 39).
Tal como no policiamento baseado nos direitos humanos, o policiamento democrático enfatiza o atendimento à comunidade, a proteção de direitos humanos, a prestação de contas e a transparência. Por conseguinte, o policiamento baseado nos direitos humanos e o policiamento democrático não se apresentam como sendo dois conceitos concorrentes. Pelo contrário, são duas abordagens assentes em princípios semelhantes e mecanismos que acabam por reforçar-se mutuamente.
Dito isto, a transição do entendimento tradicional do policiamento para um policiamento democrático e baseado nos direitos humanos não tem sido - e não é - linear. Em determinados contextos, os princípios decorrentes das abordagens democráticas e baseadas nos direitos humanos no que concerne ao policiamento são recebidos com ceticismo. Especialmente em ambientes autocráticos, as medidas com vista a aumentar a transparência e a supervisão democrática da polícia são por vezes tidas como “interferência desnecessária” no policiamento, acabando por causar transtorno ao trabalho da polícia. Os padrões internacionais emergentes sobre as metodologias de entrevista em conformidade com os direitos humanos, ou os padrões que restringem a vigilância policial, são encarados com resistência por algumas pessoas pertencentes à comunidade que visa a aplicação da lei, as quais argumentam que tais padrões de direitos humanos funcionam como “amarras para a polícia”, não sendo compatíveis com a realidade da luta contra o crime, pelo que a promoção de abordagens baseadas nos direitos humanos acabaria por enfraquecer a polícia.
O debate sobre o policiamento baseado nos direitos humanos e a eficácia dos padrões baseados nos mesmos direitos não se revela igualmente imune a críticas no mundo académico, bem como nos círculos de investigação. Posner (2014, 2014a) argumenta que, apesar da ampla ratificação dos principais tratados de direitos humanos, os serviços de polícia localizados em diversos países - incluindo democráticos - continuam a praticar impunemente homicídios extrajudiciais e tortura. Tais práticas desafiam a eficácia das leis e os padrões de direitos humanos, influenciando as ações dos governos e entidades que visam a aplicação da lei.
Apesar das vozes críticas que questionam a eficácia dos padrões internacionais de direitos humanos no contexto do policiamento, os protagonistas regionais e a comunidade internacional mantêm-se firmes, no seu compromisso, no sentido de defenderem abordagens ao policiamento assentes nos valores democráticos e nos direitos humanos. De fato, existem estudos que analisaram os padrões decorrentes do emprego de maus tratos por parte das entidades encarregues do cumprimento da lei, a longo prazo, que entendem que o cumprimento dos padrões de direitos humanos estabelecidos na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e no seu Protocolo Opcional (CAT e OPCAT) (Resolução da AG 39/46), especialmente aquelas respeitantes às salvaguardas de detenção, processos de acusação e monitoramento, acabaram por ter um efeito positivo na redução da tortura (APT, 2016).
Tais debates sobre o policiamento e as mudanças nele verificadas, ao longo do tempo, indicam que o papel que a polícia tem na sociedade é tanto sedimentado como contestado. O poder no qual a polícia baseia as suas condutas, aquando do exercício da sua função, não se tem revelado como tendo um acesso natural. Por conseguinte, seria ingénuo pensar que, no exercício desse poder, a polícia deveria estar livre do escrutínio e autorregular-se.
Principais poderes policiais e a sua implicação no que concerne aos direitos humanos
Os polícias têm a seu cargo um vasto leque de funções e de poderes, tais como o uso da força, detenção e prisão de suspeitos ou de condenados, vigilância encoberta para finalidades de investigação, assim como entrada em propriedade alheia, busca e apreensão. Aquando do exercício dos seus poderes, é concedido um elevado nível de discricionariedade aos polícias.
Contudo, tal como referido acima, a atribuição de tais poderes e a concomitante discricionariedade, conduz ao dilema de saber como poderão as sociedades assegurar que a polícia faça um uso legítimo das suas funções e não abuse dos seus poderes discricionários.
De facto, a assunção subjacente ao contrato social consiste no seguinte: “o poder flui do público para a polícia” e, por conseguinte, a polícia deve responder pelo uso do poder conferido publicamente e “o público tem o direito de especificar os critérios através dos quais a polícia faz julgamentos” (Reiman, 1985, p. 237). Esta lógica pode ser considerada como a base do controlo público, bem como o delineamento dos poderes da polícia. No entanto, foram necessários séculos de regimes opressivos, violência policial e outras formas de abusos policiais até que as sociedades, um pouco por todo o Mundo, exigissem que a polícia cumprisse a lei ditada pelo Estado de Direito e um escrutínio mais rigoroso para o exercício dos poderes policiais. A pressão para que os limites do exercício dos poderes de execução fossem definidos, assim como os critérios através dos quais a discricionariedade pode ser aplicada, ganhou força com a ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos e o desenvolvimento de padrões normativos sobre o policiamento.
De acordo com os padrões internacionais de direitos humanos, toda a ação policial deve ser guiada pelos princípios da legalidade, no sentido de que o exercício de qualquer poder policial deve efetivar-se de acordo com, e baseado na, lei; necessidade, pelo que a polícia deve exercer os seus poderes apenas quando estritamente necessário de modo a alcançar um objetivo de aplicação da lei; proporcionalidade, no sentido de que o exercício do poder deve ser proporcional à seriedade do crime ou à prossecução do objetivo policial; e da responsabilização, pois os polícias devem ser responsabilizados pelo cumprimento da lei, no exercício dos seus poderes e deveres (UNHRC, 2014; CICV, 2013, p. 137).
O exercício dos poderes policiais em contradição com os princípios da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade, pode resultar em graves violações de direitos humanos. A título exemplificativo, refira-se o uso ilegal e arbitrário da força letal pela polícia, resultando na violação do direito à vida, a detenção arbitrária, caso em que é violado o direito à liberdade e à segurança, as buscas corporais desnecessárias, realizadas aquando de custódia policial, violando a proibição de maus tratos, as políticas desnecessárias de imobilização e busca em comunidades de minorias religiosas, violando o direito à não discriminação, as práticas arbitrárias aquando da recolha e manutenção de informações criminais ou integrando medidas de vigilância encobertas numa investigação desproporcionalmente intrusiva, violando o direito à privacidade ou resultando em processos baseados em motivos preconceituosos.
É dada uma considerável atenção aos poderes intrusivos da polícia desse tipo, bem como à probabilidade desses poderes causarem violações aos direitos humanos. No entanto, existem outros poderes e funções policiais de natureza mais administrativa e tipicamente menos controlados que, se não forem bem regulamentados, podem representar uma ameaça à proteção dos direitos humanos. Por exemplo, os serviços da polícia, para além de gerenciarem e manterem registos criminais, em muitos países são responsáveis por manter vários registos administrativos, como registos de moradas ou posse de armas de fogo. Por exemplo, os serviços da polícia que compartilham informações sobre endereços e porte de armas de fogo com serviços de segurança, nacionais e estrangeiros, sem a estrutura legal necessária e os motivos justificados iriam representar riscos sérios ao direito à privacidade e à proteção de dados pessoais. Portanto, é essencial que todos os campos de atuação policial, desde os poderes de execução mais intrusivos às tarefas administrativas mais rotineiras, sejam regulados por leis e padrões de integridade, com o objetivo de garantir a responsabilização.
Tais violações dos direitos humanos, causadas por uma ação judicial, corroem, sem dúvida, a confiança do público na aplicação da lei, sendo esta essencial para a legitimidade dos serviços da polícia e o seu efetivo funcionamento (CoE, 2001; OSCE, 2009). Por conseguinte, é crucial que a polícia seja responsabilizada por qualquer violação da lei ou violação de códigos disciplinares.
A necessidade de um sistema compreensivo que abranja a responsabilização, a integridade e a supervisão da polícia
Na abordagem tradicional dos serviços da polícia, bem como a resposta às violações dos direitos humanos e outros crimes cometidos pela polícia, limitam-se principalmente à identificação do suspeito e à investigação do suposto crime. Essa abordagem restrita à responsabilização é melhor explicada através da “teoria das poucas maçãs podres”.
A “teoria das poucas maçãs podres” sugere que os casos de má conduta policial constituem casos isolados de erros individuais ou violações da lei, implicando a responsabilidade individual, e que, com exceção das “maçãs podres”, tudo na organização é bom (Newburn, 2015,p.7). Embora possa haver casos resultantes puramente de erros pessoais, a aplicação da teoria das maçãs podres à responsabilização na aplicação da lei é altamente problemática. A título exemplificativo, num acidente em que um polícia tenha tirado a vida a uma pessoa surda, porque ela não cumpriu as suas instruções, a resposta tradicional consistiria em investigar o incidente e processar o polícia pelo uso excessivo da força. No entanto, dificilmente se reduz uma qualquer prática de execução da lei a uma má conduta individual. Os departamentos executivos do governo e a gestão ao mais alto nível do órgão de execução da lei, devem desenvolver estratégias e orientações operacionais para o tratamento de pessoas com deficiência e equipar os polícias com ferramentas menos letais que as armas de fogo. A unidade de treino da polícia deve sensibilizar os polícias para as condições e necessidades específicas das pessoas com deficiência. É o supervisor que ordena o uso de armas de fogo e interroga o polícia após o incidente. Portanto, ao concentrar-se em processar o polícia individualmente, acabaria por ignorar as falhas sistemáticas e generalizadas da polícia.
Com os princípios democráticos dos serviços da polícia, que ganharam espaço nas últimas décadas, as sociedades democráticas têm debatido cada vez mais a necessidade de um sistema de responsabilização mais abrangente, que não se concentre apenas no indivíduo, mas que leve em linha de conta as leis, políticas de aplicação das leis, estratégias de gestão de recursos humanos e a cultura profissional e organizacional da aplicação da lei, que podem ter originado a má conduta. Uma tal abordagem da prestação de contas adota uma visão holística, que observa antes, durante e depois do ato da polícia, em vez de simplesmente reagir a um incidente ex post facto. Nesta estrutura:
A responsabilidade antes do ato (ex ante) implica avaliar se existe/há:
- Um quadro legislativo abrangente que estabeleça os deveres, funções e poderes da polícia, de acordo com as normas internacionais dos direitos humanos;
- Orientações claras do poder executivo, definindo a estratégia geral dos serviços da polícia;
- Uma definição correta de prioridades e orientação operacional suficiente, por parte da alta administração da polícia;
- Ferramentas e mecanismos com vista a promover padrões de ética e integridade, em toda a organização;
- Recursos suficientes para equipar e treinar os agentes policiais, para agirem de acordo com os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade.
A responsabilidade durante as ações da polícia exige:
Mecanismos e procedimentos com vista à supervisão contínua das atividades da polícia do quotidiano, bem como a monitorização externa dos principais poderes e funções da polícia (como a detenção, operações stop e buscas, uso da força e comunicação com a comunidade).
A responsabilidade após ações da polícia (ex post) exige que exista:
- A revisão efetiva dos processos internos apropriados, de denúncia e interrogatório pós-incidente dentro da polícia;
- Mecanismos eficazes para denunciar internamente uma conduta imprópria, bem como a receção e tratamento de reclamações do público;
- Mecanismos internos e externos que visem investigar denúncias contra polícias;
- Procedimentos que tenham em vista aprender com os erros e corrigi-los, para evitar futuros incidentes (UNODC, 2011).
Paralelamente ao surgimento de uma abordagem abrangente da responsabilidade, a comunidade internacional tem vindo a enfatizar, cada vez mais, que a necessidade de responsabilizar os polícias ou os serviços de polícia, não deve ser deixada apenas para a polícia. De facto, uma série de instrumentos normativos internacionais, como sejam o Código de Conduta para Funcionários da Aplicação da Lei (Resolução 34/169 da GA, artigo 8), os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (1990, Princípio 22), os Princípios sobre a Efetividade, a Prevenção e a Investigação de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias (resolução do Conselho Económico e Social 1989/65, Princípio 9), pedem uma revisão e/ou investigação independente e imparcial de certos crimes cometidos pela polícia. O módulo 4 sobre o uso da força e armas de fogo fornece ainda informações sobre os princípios acima mencionados.
Nas últimas duas décadas, foram desenvolvidos instrumentos internacionais mais específicos, focados na investigação efetiva das violações mais gravosas dos direitos humanos; ou seja, o Protocolo de Minnesota sobre a investigação de mortes potencialmente ilegais (2016) e o Manual sobre a investigação e documentação eficazes de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes (Protocolo de Istambul) (2004).
Além desses padrões e instrumentos, as instituições e organizações regionais reconhecem amplamente que os serviços da polícia que investigam crimes e a má conduta dos seus próprios agentes facilitariam a ocultação de irregularidades o que, portanto, poderia resultar numa cultura de impunidade o que, por sua vez, afetaria gravemente a confiança do público na polícia (UNHRC, 2010; OSCE, 2009; CoE, 2009).
Por conseguinte, nas últimas duas décadas os instrumentos internacionais e regionais enfatizaram mais ainda a responsabilização da polícia como um sistema de per si, requerendo assim o envolvimento de vários atores externos e civis na tarefa de supervisão. Neste sentido, o Código de Ética da Polícia Europeia estipula que “a polícia deve prestar contas a vários poderes independentes do Estado Democrático ou seja, dos poderes legislativo, executivo e judiciário” (2010, comentário ao artigo 60). A Resolução sobre a Reforma Policial, responsabilidade e Supervisão da Polícia Civil, adotada pela Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, insta os “Estados Partes da Carta Africana a estabelecer mecanismos independentes de supervisão do policiamento civil” (2006, artigo 3).
A próxima secção oferece uma visão geral do papel da polícia, bem como dos atores externos de controlo e supervisão, dentro de um sistema que abrange a responsabilização da polícia.
Seguinte: Tópico dois – Mecanismos e Atores principais em termos de responsabilização e supervisão da polícia
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