Este módulo é um recurso para professores 

 

Impacto direto das armas de fogo

 

O tráfico ilícito e o uso indevido de armas de fogo têm consequências de longo alcance, tanto na segurança quanto no desenvolvimento. O Módulo 10, Impacto das armas de fogo na sociedade e no desenvolvimento, é inteiramente dedicado a esse tópico.

 

Armas de fogo e violência armada: Mensurando mortes violentas

Uma das consequências mais óbvias e tangíveis do uso indevido de armas de fogo é a quantidade de danos físicos e mortes relacionados às armas de fogo. Mas o impacto das armas de fogo vai muito além dessa consequência inicial. 'Violência armada' é o termo amplamente usado nesse contexto e refere-se ao “uso ou ameaça de uso de armas para causar morte, ferimento ou dano psicossocial” (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 2009: 13; 2011: ii). A violência armada não se limita ao uso de armas de fogo, mas a qualquer arma. Surgiu nos anos 90, no contexto de esforços internacionais que visavam reduzir o sofrimento humano associado ao uso de armas. Essa tem sido a constante Leitmotif da Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, uma iniciativa diplomática lançada em 2006 e aprovada em mais de cem países, com o objetivo de abordar as inter-relações entre violência armada e desenvolvimento (Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2006).

Quando surgiu a questão da violência armada, os dados disponíveis eram, na melhor das hipóteses, ad-hoc e, em muitos casos, imprecisos e enganosos. Hoje, além do Secretariado da Declaração de Genebra, outras organizações internacionais e regionais, incluindo o UNODC (portal de Estatísticas e Dados) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), coletam regularmente dados sobre homicídios e mortes violentas, contribuindo para a compreensão global de tendências e padrões em violência armada.

A abordagem padrão para medir o impacto da violência armada é, em geral, by proxy, ou seja, através da contabilização de 'mortes violentas', comumente separando mortes em situação de conflito, mortes fora de conflito e suicídios ou mortes autoinfligidas. Por exemplo, a violência na Síria e no Iêmen levou a um aumento nas mortes por conflito. Por outro lado, as mortes fora de área de conflito incluiriam todas as formas de homicídio intencional e não intencional. O Estudo Global sobre Homicídios 2013 do UNODC (Dawson-Faber, 2014) utilizou a tipologia apresentada em seguida.

Figura 1.3 UNODC Global Homicide Typology (UNODC, 2013: 9)

Uma abordagem diferente foi seguida pelo Secretariado da Declaração de Genebra (2011) em sua segunda edição de Global Burden of Armed Violence (O ônus global da violência armada), que se afastou da distinção clássica entre violência 'em conflito' e em 'não-conflito' e propôs uma política unificada, com meios de registrar e denunciar a violência armada. Essa abordagem leva em consideração várias inter-relações entre diversos níveis de violência letal e a maneira como são contabilizadas. A base para medir a violência pelo Secretariado da Declaração de Genebra em suas edições subsequentes permaneceu sendo essa.

A suposição subjacente a essa abordagem "unificada" é que é praticamente impossível classificar a violência contemporânea em categorias mutuamente exclusivas devido às linhas tenues entre violência política, interpessoal, criminal e organizada. As mortes podem ser registradas em diferentes categorias - ou em nenhuma - dependendo do contexto nacional (McEvoy e Hideg, 2017).

Figura 1.4 Abordagem unificada para denunciar e contar a violência armada. Distribuição das vítimas de violência letal por ano, 2007-2012 (Fonte: Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2015)

Independente do método de representação e explicação, uma descoberta comum de pesquisas sobre violência armada, remete ao fato de que a grande maioria dos assassinatos no mundo todo é produzida fora dos cenários de conflito armado.

Em sua edição de 2015, a Declaração de Genebra revelou que 74% dos homicídios intencionais registrados foram atribuídos à violência interpessoal, violência de gangues e crimes de motivação econômica (377.000). As mortes em situação de conflito armado (70.000) representaram 14%, havendo um aumento em relação a anos anteriores devido, principalmente, a conflitos armados na Líbia e na Síria. Para o período de 2007 a 2012, a taxa global média de mortes violentas foi de 7,4 pessoas mortas por 100.000 habitantes (Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2015).

Figura 1.5 Distribuição de mortes violentas, 2007-2012 (Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2015)

De acordo com este estudo, as armas de fogo representam um elemento constante e responsável por grande parte das mortes violentas, havendo grandes diferenças entre as regiões do mundo (armas de fogo foram usadas em 46,3% de todos os homicídios e em uma estimativa de 32,3% das mortes diretas em conflitos). Representaram uma média de 44,1% de todas as mortes violentas ou uma média anual de quase 197.000 mortes no período de 2007 a 2012) (Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2015). Resultados semelhantes também surgiram do Estudo Global de Homicídios do UNODC (veja abaixo).

 

Impacto das armas de fogo na paz: armas de fogo em situações de conflito

As armas de fogo estão presentes em qualquer tipo de conflito armado, independentemente da sua localização geográfica. O uso de armas de fogo/APAL em conflitos foi documentado desde 1997 no relatório do Painel de Armas Pequenas das Nações Unidas, que também propôs a primeira definição de APAL (consulte as definições deste módulo). Um exame superficial das armas utilizadas nos conflitos contemporâneos revela as mesmas descobertas. Um relatório de 2015 sobre armas usadas pelo ISIS ilustra a variabilidade geográfica e técnica do uso de armas de fogo em situações de conflito (Sputnik News, 2015).

A presença de armas de fogo, especialmente armas de nível militar (para obter mais explicações, consulte o Módulo 2) em uma zona de conflito, tem um impacto significativo no próprio conflito. Primeiro, leva a um aumento de desfechos fatais e destrutivos e dos custos gerais do conflito. Muitos conflitos locais contam com armas básicas, como espingardasde tiro único, mas à medida que armas mais sofisticadas e poderosas são enviadas para os conflitos, há várias consequências: aumento de vítimas e de custos médicos; programas de desenvolvimento são afetados; e uma vez que as partes no conflito estejam melhor armadas, é menos provável que negociem um cessar-fogo, encorajado pela posse de armas mais letais. Segundo, há, geralmente, um aumento de atos criminosos na área de conflito. Assaltos à mão armada, violência doméstica, sequestros, terrorismo, escravidão, tráfico de seres humanos e de mercadorias, caça de espécies ameaçadas, roubo de gado - todos tendem a aumentar à medida que mais armas de fogo se tornam disponíveis nas áreas de conflito. Uma vez proliferadas, as armas de fogo são muito mais difíceis de se controlar. Mesmo quando a paz é negociada, os atos criminosos tendem a continuar após o término do conflito (Laurance e Meek, 1996).

Não é apenas a disponibilidade de armas que cria esses efeitos. As causas profundas do sofrimento humano vistas nesses conflitos são mais complexas, mas o papel das armas de fogo não deve ser ignorado. Em seu relatório de setembro de 1997, o Painel de Peritos em Armas Pequenas das Nações Unidas declarou que:

“A acumulação de armas pequenas e armamento leve, por si só, não causa os conflitos nos quais são utilizados [...]. Esses conflitos têm causas subjacentes que surgem de vários fatores políticos, comerciais, socioeconômicos, étnicos, culturais e ideológicos acumulados e complexos. Tais conflitos não serão finalmente resolvidos sem abordar suas causas principais”. (Assembléia Geral das Nações Unidas, 1997: 10). 

O restante do relatório do Painel de Armas Pequenas das Nações Unidas e vários outros apontamentos da comunidade internacional concentram-se nas atuais ferramentas de violência, que trazem significado aos adjetivos “mortais” e “massa” usados ​​para definir conflitos.

Embora exista um debate considerável sobre o papel causal das armas de fogo na explicação da violência armada, há poucas dúvidas de que o acesso e a disponibilidade de armas de fogo nas mãos de grupos criminosos ou terroristas, gangues locais ou grupos politicamente motivados sejam fatores determinantes na exacerbação da violência. Muitos dizem que é a cultura e o contexto local que determinam os danos causados ​​pelas armas de fogo. Peter Squires (2014) coloca de outra maneira:

“Pesquisadores sobre o tema de armas de fogo e ONGs de desenvolvimento e de avaliação de projetos em diferentes países e continentes costumam rapidamente apontar a importância das culturas locais, histórias, recursos, circunstâncias, políticas, facções e disputas que distinguem um conflito crônico e hiper-violento e complexo de outro... qualquer que seja a razão, pobreza, falha do Estado, corrupção ou falta de governança em qualquer região, a chegada e a dispersão de dezenas de milhares de espingardas de assalto mudam as coisas e praticamente atropelam todas as especificidades locais ... O ponto é que, o que quer que fosse único ou diferente em uma região antes de seu armamento, passa a ser menos importante, depois de a área estar inundada, por exemplo, por AK-47s.”  

 

Impacto das armas de fogo na segurança: armas de fogo em situações de não conflito ou crime

A distinção entre violência em situação de conflito e de não-conflito é típica da perspectiva do desenvolvimento, refletida, em grande parte, da pesquisa dominante nesse campo. No entanto, da perspectiva da prevenção ao crime e da justiça criminal, a maioria das formas de violência armada gerada em uma situação de não-conflito se refere, de fato, a atos criminosos. Os indicadores mais frequentemente usados ​​para rastrear as tendências da violência armada relacionada ao crime são as taxas de homicídios, medida em número de homicídios por 100.000, e o número de pessoas mortas com uma arma de fogo; indicadores padrão usados ​​em países em desenvolvimento e desenvolvidos.

A redução do número de homicídios também é uma das variáveis ​​mensuráveis ​​mais comuns em muitos programas ou políticas de redução da violência armada de organizações internacionais ou agências governamentais com o objetivo de reduzir os níveis de violência. A razão para isso é óbvia: o aspecto moral da morte por homicídio é visto na maioria das sociedades como o crime mais grave que pode afetar essa sociedade. Mas a contagem de humanos morrendo também, tem implicações mais amplas: o número de mortes por armas de fogo, se aumentar, indicaria maior medo nas regiões onde elas estão ocorrendo. Também poderia indicar mais assassinatos por vingança, um aumento na violência doméstica e uma diminuição na disposição dos cidadãos comuns de participar de programas destinados a reduzir os assassinatos. Mais adiante neste módulo, alguns desses aspectos serão discutidos. Mas a primeira mensagem-chave deste módulo é que as mortes violentas, especialmente homicídios intencionais com armas de fogo, são um indicador proxy válido para outros efeitos negativos que são bastante difíceis de quantificar como, por exemplo, a segurança local e regional, implicações sociais e impacto local na política ou na economia.

Em seu Estudo Global sobre Homicídios de 2013, o UNODC desagregou os dados de homicídio por arma utilizada (arma de fogo, faca, outra) e por região. Na mesma direção do que foi encontrado por outras pesquisas citadas acima, o estudo da ONU revelou que 41% dos homicídios globais foram cometidos com armas de fogo. A desagregação regional indicou que o nível mais alto de morte por arma de fogo ocorreu nas Américas (66%), com os níveis mais baixos na Oceania (11%) e na Europa (13%).

Figura 1.6 - Mecanismos de homicídio, por região (2012 ou depois) (Fonte: UNODC, 2013: 16)

Como McEvoy e Hideg (2017: 49) observam, as armas de fogo desempenham um papel significativo no cometimento de homicídios: “Globalmente, as armas de fogo foram usadas em 44% de todos os homicídios em 2016. Em 2004, foram usadas em cerca de 40% dos homicídios. Os dados disponíveis sugerem que as mortes globais por armas de fogo aumentaram de cerca de 171.000 em 2004 para 210.000 em 2016.

Esse aumento está alinhado com as tendências mais amplas das taxas totais de homicídios, que passaram de 5,11 para 5,15 por 100.000 habitantes em 2015-2016. Revendo onde esses eventos estão ocorrendo, os autores sugerem que as mortes relacionadas a armas de fogo geralmente ocorrem em regiões de conflito, com 41% das mortes por armas de fogo ocorrendo em situação de conflito. No entanto, ao analisar todas as mortes por armas de fogo em todo o mundo, a clara maioria das mortes não são em situação de conflito, com mais de 80% acontecendo por homicídios intencionais em situações fora do conflito. As mortes por conflito representam mais 15% e, devido a uma intervenção legal, os homicídios não intencionais outros 4%. Portanto, mesmo em zonas de conflito, muitas mortes relacionadas a armas de fogo não estão diretamente relacionadas ao conflito.

 

O custo do uso de armas de fogo

Os custos diretos associados a mortes e ferimentos são múltiplos. No nível macro, existem custos financeiros para o Estado, como custos de saúde e assistência social, custos para a justiça criminal e sistemas penais e o impacto econômico da perda de produtividade. Além disso, a percepção de que um país ou região é insegura por causa da violência armada também tem um impacto significativo nos investimentos, no turismo e em outros setores empresariais.

O impacto negativo da violência e da insegurança no turismo e nas viagens foi estimado em US $ 2,7 mil milhões em perdas nos primeiros seis meses de 2014 na Tailândia e US $ 2,5 mil milhões no Egito, de 2011 a 2013 (Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento, 2015). Exemplos específicos incluem o ataque terrorista às praias da Tunísia em 2015, no qual uma arma de fogo foi usada para assassinar 38 turistas. A diminuição do turismo afetou significativamente as finanças do país após o ataque devido à contribuição percentual significativa dessa indústria para o PIB do país. Nesse sentido, houve uma redução no crescimento econômico do país de 3% para 0,5%, naquele ano (Kim, 2015). Os custos após os ataques de Paris em 2015, nos quais 130 pessoas perderam a vida, a maioria delas mortas por armas de fogo, foram medidas não apenas em termos do impacto na indústria do turismo, mas também em termos do aumento do investimento em segurança, bem como em custos de saúde e assistência social (Walker, 2015).

No nível meso, há custos para as comunidades, tanto em termos financeiros quanto em termos do impacto nos sentimentos de segurança e proteção, e custos para outras organizações, como as companhias de seguros. No caso dos ataques terroristas mencionados acima, também houve custos para as empresas locais, incluindo restaurantes e hotéis. Muitas empresas foram forçadas a fechar devido à perda de receita após esses eventos.

McCollister et al. (2010: 1) descrevem os custos de crimes violentos nos EUA, estimando um valor total de US $ 194 mil milhões : 

“O crime gera custos substanciais para a sociedade nos níveis individual, comunitário e nacional. Nos Estados Unidos, mais de 23 milhões de crimes foram cometidos em 2007, resultando em aproximadamente $ 15 mil milhões de dólares em perdas econômicas para as vítimas e US $ 179 mil milhões  em gastos governamentais em proteção policial, atividades judiciais e legais e reparações. Programas que impedem direta ou indiretamente o crime podem, portanto, gerar benefícios econômicos substanciais, reduzindo os custos relacionados ao crime incorridos pelas vítimas, comunidades e sistema de justiça criminal”.

Finalmente, no nível micro, há um impacto resultante das tragédias pessoais por trás de cada estatística: do impacto emocional e financeiro nas famílias enlutadas ao impacto psicossocial para os que ficaram com ferimentos que mudam a vida. Um exemplo disso é o impacto que o crime violento tem nas testemunhas infantis. Collins e Swoveland (2014) observam os efeitos emocionais do estresse experimentado por crianças e jovens por trauma decorrente da exposição à violência, e como suas emoções podem ser internalizadas e levar a agressões posteriores e mais violência. Portanto, essa exposição pode ter efeitos ao longo da vida, com consequências geracionais e, portanto, uma abordagem de longo prazo para lidar com essas questões é fundamental.

Em 2011, o Relatório Anual de Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial, intitulado 'Conflito, Segurança e Desenvolvimento', abordou os custos humanos da violência provocada na maioria dos casos pela proliferação generalizada de armas ou 'armificação' (“weaponization”) de sociedades, ou na recuperação pós-conflitos. Os autores observam os efeitos da violência na segurança e dignidade humana, argumentando que estar livre da violência e do medo é um direito humano básico (Banco Mundial, 2011). Para fornecer evidências empíricas dos custos humanos, o estudo realizou uma pesquisa com pessoas em sete áreas de conflito - República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Mali, Serra Leoa, Gaza, Cisjordânia e Colômbia.

Figura 1.7 - A violência cria sofrimento para as famílias de inúmeras maneiras: Respostas à pesquisa sobre experiências de violência em familiares imediatos nos últimos três anos (The World Bank, 2011: 59).

Este estudo enfatiza a dor e o sofrimento causados pela violência e insegurança, bem como o impacto negativo no comportamento e nas atividades econômicas das pessoas. Em situações de conflito, a destruição de capital físico e infraestrutura - estradas, prédios, clínicas, escolas - e a perda de capital humano por deslocação e migração representam custos sérios de desenvolvimento. Mesmo em ambientes fora de conflito, em que a violência criminal ou interpessoal não causa destruição física generalizada, é importante não subestimar a ameaça à capacidade do Estado e o impacto no ambiente de negócios e no desenvolvimento social representado por níveis cronicamente altos de violência, crime organizado e corrupção que, muitas vezes, decorrem (Geneva Declaration on Armed Violence and Development, 2015).

 
Seguinte:  Impactos indiretos das armas de fogo nos Estados ou comunidades
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