Este módulo é um recurso para professores 

 

Métodos multidisciplinares de investigação e acusação

 

A natureza clandestina do tráfico ilícito de migrantes significa que as investigações só são desencadeadas quando incidentes específicos chegam ao conhecimento das autoridades. No entanto, também é importante ter em mente que, devido às tipologias já conhecidas de iniciativas de tráfico ilícito de migrantes (ver o Módulo 5), as autoridades policiais e judiciárias podem estar na posição de identificar comportamentos suspeitos. Quando identificados, estes podem justificar medidas proativas. Por exemplo, o conhecimento de que o número de migrantes em situação irregular de uma certa nacionalidade provenientes de um Estado costeiro aumentou significativamente, é provavelmente do interesse da polícia, mesmo que nenhuma embarcação seja intercetada a transportar esses migrantes. Neste caso, a polícia pode monitorizar de perto o tráfico marítimo em rotas/áreas identificadas, estabelecer contactos informais com autoridades policiais no país de origem ou de trânsitoe continuar a reunir informação.

As investigações acerca do tráfico ilícito de migrantes apresentam inúmeros desafios. Antes de mais, o “produto” a ser introduzido ilegalmente são seres humanos. A preservação da vida e segurança dos envolvidos (não apenas dos migrantes introduzidos ilegalmente) deve ser assegurada (ver Módulo 2). Além disso, o caráter transnacional deste crime significa que parte das provasrelevantes provavelmente serão encontradas no estrangeiro. Isto significa que a cooperação entre Estados é essencial. No entanto, os Estados podem ser incapazes ou não estar dispostos a cooperar (ver Módulo 11 da Série de Módulos Universitários sobre Crime Organizado). Outros desafios incluem a relutância das testemunhas, que poderão temer retaliações ao testemunharcontra os traficantes e ainda, dificuldades de adaptação às mudanças no modus operandi dos grupos criminosos organizados(por exemplo, a utilização de sistemas de pagamento Hawala ao invés de sistemas bancários formais) (ver Módulos 1, 2, 3, 5 e 7 da Série de Módulos Universitários sobre Crime Organizado).

Caixa 1

Desafios nas investigações e acusações por tráfico ilícito de migrantes (não exaustivo)

  • Riscos para a vida, segurança e dignidade humana dos migrantes introduzidos ilegalmente/testemunhas;
  • Natureza estruturada e bem organizada das redes criminosas;
  • Variedade de recursos financeiros e logísticos que sustentam as iniciativas ligadas à prática do tráfico ilícito de migrantes;
  • Uso das redes sociais para comunicar, o que nem sempre é fácil de monitorizar;
  • Serviços financeiros utilizados para processar pagamentos, que são difíceis de localizar e de monitorizar;
  • Adaptação rápida dos grupos criminosos organizados a novos avanços nas técnicas e políticas da aplicação da lei;
  • Desafios na cooperação internacional devido à indisponibilidade ou à incapacidade em cooperar (por exemplo, quando há uma falta de adequação dos quadros legislativos e institucionais para uma assistência mútua).

Os desafios e as características específicas provocadas pelo tráfico ilícito de migrantes requerem métodos de investigação e de acusação robustos e adequados para enfrentar as dificuldades associadas a este tipo de crime. A abordagem multidisciplinar é uma metodologia promissora. Inclui uma cooperação próxima entre Estados e agências estatais, assim como com outros atores relevantes tais como as ONG e o setor privado (ver secção acerca das ‘Organizações Não-Governamentais’)). Os fornecedores de serviçosde Internet e redes sociais são um bom exemplo do setor privado (UNODC, Grupo de Trabalho sobre Tráfico IIícito de Migrantes, 2018). Tal como ilustrado nas Caixas 2 e 3, o aumento do uso que os traficante de migrantes fazem das redes sociais levou a pedidos para que as plataformas das redes sociais combatessem essas práticas. O objetivo primordial é transformar o tráfico ilícito de migrantes como negócio de baixo risco e de lucro elevado num de alto risco e de baixo lucro. 

Caixa 2

Traficantes de migrantes na Líbia publicam abuso de migrantes nas redes sociais para obtenção de resgates

Segundo as Nações Unidas, traficantes de pessoas e gangues criminosos na Líbia estão a utilizar as redes sociais para transmitir o abuso e a violência que infligem aos migrantes africanos em cativeiro e para exigir resgates às suas famílias que estão no país de origem. Num vídeo publicado no Facebook, centenas de somalis e etíopes macilentos, incluindo várias crianças, são vistos amontoados numa sala de cimento numa localização desconhecida na Líbia. Os migrantes e refugiados filmados dizem ter sido espancados, torturados e mantidos em celas sem comida, e que os seus pais e familiares receberam vídeos através das redes sociais a pedir até $10.000 para os poupar de serem mortos. “Eles partiram os meus dentes… eles partiram a minha mão… esta pedra foi posta em cima de mim durante os últimos três dias,” diz um homem num vídeo publicado na semana passada, a explicar como os seus captores colocaram um bloco de cimento nas suas costas como castigo, após a sua família ter recusado pagar $8.000. Pelo menos 20.000 migrantes estão detidos na Líbia, a principal “porta de acesso” para aqueles que tentam chegar à Europa por mar, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Muitos são mantidos e extorquidos por traficantes de migrantes e gangues, e cada vez mais são trocados - no que eles chamam mercados de escravos - para trabalho forçado e exploração sexual, diz a agência da ONU..

“A OIM condena a forma como os gangues criminosos utilizam as redes sociais para um chocante abuso às pessoas detidas contra a sua vontade e para extorquir dinheiro às suas famílias que estão nos países de origem”, disse Mohammed Abdiker, diretor das operações e emergências da OIM. “Isto é um problema global onde um traficante de migrantes ou um gangue criminoso pode facilmente utilizar as plataformas digitais para publicitar os seus serviços, seduzir pessoas vulneráveis em movimento e depois explorá-las a elas e às suas famílias”, disse Abdiker no seu testemunho. Vários migrantes senegaleses que na semana passada foram levados da Líbia para casa pela OIM contaram à Fundação Thomson Reuters sobre o “inferno” que sofreram enquanto estiveram detidos, desde serem espancados e passarem fome a verem os seus companheiros a morrer à fome ou de doença. A viagem da Líbia, pelo Mediterrâneo, até Itália - frequentemente em barcos frágeis geridos por traficantes de migrantes - tem-se tornado a principal rota para a Europa por migrantes de África, após a repressão feita pela União Europeia às travessias marítimas provindas da Turquia durante o ano passado. Os traficantes de migrantes, numa Líbia cada vez mais sem lei, estão a bater números recorde de migrantes em barcos, com mais de 61.000 pessoas chegadas por mar a Itália até agora, cerca de 35 por cento do registado durante 2016.

Africa News, 16 de junho de 2017
Caixa 3

A ONU pede aos gigantes das redes sociais para controlar as plataformas utilizadas para atrair os migrantes africanos

A agência de migração da ONU alertou os gigantes das redes sociais na sexta-feira para dificultarem aos traficantes de migrantes a utilização das suas plataformas para atrair migrantes do oeste africano para a Líbia, onde podem enfrentar detenção, tortura, escravatura ou morte. Os traficantes de migrantes utilizam frequentemente o Facebook para chegar a possíveis migrantes com falsas promessas de emprego na Europa, disse Leonard Doyle, o porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Quando os migrantes são torturados, por vezes são enviados vídeos para as suas famílias através do WhatsApp como forma de extorsão, disse ele. “Nós (...) pedimos mesmo às empresas das redes sociais para intervirem e comportarem-se de uma forma responsável quando as pessoas estão a ser aliciados para mortes, para a sua tortura”, disse Doyle numa conferência de imprensa em Genebra. Não houve respostas imediatas por parte do Facebook nem do WhatsApp aos pedidos de comentários da Reuters.

Centenas de milhares de migrantes tentaram atravessar o mediterrâneo para a Europa desde 2014 e 3.091 morreram em viagem apenas neste ano, muitos depois de passarem pela Líbia. Este ano, o número de migrantes a entrar na Europa é de 165.000, cerca de menos 100.000 que o total do ano passado, mas o fluxo introduziu um problema político para os países europeus. A OIM tem estado em discussões com os fornecedores das redes sociais acerca das suas preocupações, disse Doyle, acrescentando: “E até agora com muito pouco efeito. O que eles dizem é ‘por favor digam-nos quais são as páginas e nós iremos encerrá-las’. “Não é a nossa função policiar as páginas do Facebook. O Facebook deve policiar as suas próprias páginas,” disse ele. África representa um mercado grande e em expansão para as redes sociais, mas muitas pessoas estão desempregadas e vulneráveis, disse ele. “O Facebook está expandindo, procurando participação no mercado pelo Oeste Africano e expandindo a chamada “free basics”, que permite aos telemóveis menos modernos (dumb phones) ter acesso ao Facebook.” Assim, estás a um clique do traficante de migrantes, a um clique das mentiras”, disse ele. As empresas das redes sociais estão “a dar meios de comunicação super potencializados a criminosos, a traficantes de migrantes, a exploradores”, acrescenta. Imagens transmitidas pela CNN no mês passado parecem mostrar migrantes a serem leiloados como escravos por traficantes líbios. Isto despertou a ira na Europa e em África e salientou os riscos que os migrantes enfrentam. Doyle chamou as empresas das redes sociais a investir numa projeção mediática dotada de um espírito cívico e fez notar que na Google, janelas instantâneas aparecem se o utilizador estiver a olhar para imagens pornográficas, para alertar para perigos ou criminalidade. 

Reuters, 8 de dezembro de 2017

O propósito da abordagem multidisciplinar é traçar o caminho que os migrantes fazem das suas casas até aos países de destino e identificar medidas eficazes para interromper as iniciativas de tráfico ilícito de migrantes. As medidas são diversas na sua natureza e incluem o direito penal, assim como incluem instrumentos administrativos, relacionados com impostos e de direito privado. Este Módulo foca-se apenas nas respostas do direito penal, enquanto que o Módulo 4 oferece uma visão geral das respostas não relacionadas com direito penal.

Dentro da abordagem multidisciplinar, é importante perceber-se o “modelo de obstáculos”(European Migration Network & Dutch Ministry of Security and Justice, 2016, p. 12). O tráfico ilícito de migrantes é, em muitos aspetos, um negócio. É baseado num modelo de negócios, composto por diversas fases, em que o principal objetivo é maximizar o lucro dos traficantes de migrantes. De forma a combater o auxílio à imigração ilegal, deveriam ser criados obstáculos para prejudicar o negócio nas suas várias fases do processo. Por exemplo, as autoridades estatais competentes deveriam prevenir os esforços de recrutamento por parte dos traficantes de migrantes, em campos de refugiados ou em centros de acolhimento.

Atendendo a que o transporte privado é utilizado frequentemente para o tráfico ilícito de migrantes (por exemplo, autocarros, táxis e camiões), a criação de desincentivos fortes para os prestadores de serviços, através de sanções administrativas ou penais, pode ajudar a prevenção de operações voltadas à prática do tráfico ilícito de migrantes. Um caso de utilização de meios de transporte privados para prática do tráfico ilícito de migrantes é ilustrado na decisão abaixo:

Caixa 4

Decisão no. 108/2013

O arguido foi acusado na Alemanha de ser membro de um grupo de crime organizado e de facilitar a entrada ilegal, com o propósito de obter um benefício financeiro. Especificamente:

  • O grupo de crime organizado era composto por um número indeterminado de indivíduos, com tarefas atribuídas. Este organizou a introdução ilegal de migrantes, em diversas iniciativas, desde a Grécia até Dresden (Alemanha). As atividades do grupo de crime organizado tinham uma expetativa de durabilidade.
  • Os migrantes irregulares eram maioritariamente afegãos e cidadãos de países árabes.
  • As iniciativas de tráfico ilícito de migrantes foram realizadas através de um autocarro turístico alterado com matrícula grega, o qual incluía um compartimento escondido para ocultar os migrantes em situação irregular. Os migrantes viajaram nesse compartimento durante várias horas, em condições desumanas.
  • Em cada iniciativa de tráfico ilícito de migrantes, o grupo de crime organizado recorria a cerca de 28 cúmplices que fingiam ser turistas, para evitar suspeitas, caso o autocarro fosse intercetado pelas autoridades policiais.
  • A arguida era uma das pessoas que se faziam passar por turistas, tendo recebido 100 euros por cada iniciativa de auxílio à imigração ilegal. Ela juntou-se ao grupo de crime organizado antes de 6 de março de 2011.
  • Contaram-se pelo menos cinco iniciativas de tráfico ilícito de migrantes separadas em que a arguida terá participado.
Base de dados de Jurisprudência SHERLOC sobre Tráfico Ilícito de Migrantes- Grécia

A abordagem multidisciplinar é para ser aplicada dentro das próprias organizações e pelas autoridades policiais. Por exemplo, as unidades de combate ao tráfico de migrantes devem trabalhar em estreita colaboração com outras unidades relevantes, tais como aquelas que combatem a corrupção e branqueamento de capitais, visto que estes crimes estão frequentemente associados à introdução clandestina de migrantes. Atendendo às possíveis ligações entre o tráfico ilícito de migrantes e o tráfico de pessoas é importante garantir que as secções policiais que combatem estes crimes, onde existam e estejam a operar sozinhas, trabalhem em conjunto conforme os casos (ver Módulo 11).

O tráfico ilícito de migrantes gera lucros consideráveis (ver Módulo 5). Deste modo, as unidades policiais de combate ao tráfico de migrantes devem trabalhar em estreita colaboração com as unidades de informação financeira para combater o fluxo financeirodas operações de introdução ilegal (ver secção seguinte acerca de ‘Investigações Financeiras). Finalmente, as unidades de cibercrime também devem estar envolvidas, devido ao conhecimento específico que tais unidades podem trazer para as investigações (ver Módulo 14).

Figura 1: Uma abordagem holística da aplicação da Lei

É importante ter em atenção que o tráfico ilícito de migrantes é um crime que apresenta desafios no que toca à recolha de provas. Surgem aqui duas considerações:

  • A mesma abordagem holística defendida quanto às unidades policiais competentes é pertinente quando são consideradas as técnicas de investigação e os meios de recolha de provas. Assim, como explicado na secção acerca de ‘Prova Testemunhal’, obter testemunhos não deveria excluir a recolha de provas documentais ou periciais. Além disso, técnicas exequíveis, justificadas e disponíveis devem ser aplicadas para obter provas, incluindo, inter alia, vigilâncias eletrónicas e físicas, operações encobertas e investigações financeiras. (ver Artigo 20.º da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (CNUCOT) acerca de técnicas especiais de investigação).
  • Pode ser necessário o foco em outros crimes que não o tráfico ilícito de migrantes aquando da acusação de grupos criminosos organizados. É importante combater o auxílio à imigração ilegal, mas existem dificuldades inerentes à recolha de provas, à prova dos elementos do crime e à realização de acusações bem-sucedidas dos traficantes de migrantes, especialmente organizadores de alto nível. Os atores da justiça criminal podem investigar outros crimes ligados a um grupo de criminosos organizados envolvido no tráfico ilícito de migrantes, tais como branqueamento de capitais ou obstrução à justiça, em que as acusações desses crimes têm maior probabilidade de serem bem-sucedidas. Idealmente, claro, os perpetradores devem ser acusados por todos os crimes cometidos (ver Módulo 9 da Série de Módulos Universitários sobre Crime Organizado) para reduzir a capacidade de grupos criminosos organizados agirem impunemente.
Caixa 5

Caso N. 3267/04

Neste caso existiram alegações de que uma embarcação, que havia resgatado 37 migrantes em perigo no mar, se tinha envolvido com a prática do auxílio à imigração ilegal, em particular por patrulhar águas internacionais à procura de migrantes à deriva. Ao absolveros arguidos, o Tribunal de Agrigento considerou que a rota feita pelo navio tinha uma particular importância, ao avaliar se teria havido a intenção de facilitar a entrada ilegal em Itália. A este respeito, o Tribunal teve em atenção os dados disponíveis através do Data Voyage Recording, um tipo de “caixa negra” dos navios e embarcações que permite reproduzir o itinerário realizado. Esta mostrou um padrão de movimento consistente com uma embarcação em mau estado de funcionamento, realizando testes de navegabilidade e de fiabilidade técnica, ao invés de se deslocar para procurar por migrantes no mar. Curiosamente, o Tribunal também teve em consideração, como provas documentais, diversos vídeos e relatórios elaborados por jornalistas a bordo da embarcação, incluindo gravações vídeo com o objetivo de preparar um filme documentário.

Base de dados de Jurisprudência SHERLOC sobre Tráfico Ilícito de Migrantes- Itália

Os seguintes casos, disponíveis na Base de Dados sobre o  tráfico ilícito de migrantes “SHERLOC”, fornecem exemplos do uso de diferentes técnicas de investigação:

Considerando que os órgãos policiais não têm recursos infinitos, é importante avaliar como é que outras entidades públicas podem auxiliar no combate ao auxílio à imigração ilegal. Um exemplo claro é o dos inspetores de trabalho, os quais podem identificar e reportar situações consideradas suspeitas às autoridades policiais, tais como a presença de trabalhadores irregulares. O possível envolvimento de grupos criminosos organizados pode depois ser investigago. 

Caixa 6

Na República das Maldivas, os oficiais de imigração acompanham frequentemente os inspetores de trabalho nas suas visitas de serviço. Enquanto que os inspetores de trabalho maldivos não têm competências de investigação, por uma questão de prática, estes comunicam as situações suspeitas ao Departamento de Imigração que irá incluir a polícia criminal e Ministério Público,caso seja necessário.

No contexto de uma abordagem multidisciplinar na investigação e acusação do auxílio à imigração ilegal, é também importante explorar as vias através das quais os órgãos especializados, as organizações regionais e internacionais e as entidades podem auxiliar (ver Caixas 29-31 Caixas 29-31).

 
Seguinte: Os diferentes atores relevantes no combate ao tráfico ilícito de migrantes e os seus respetivos papéis
Regressar ao início