Este módulo é um recurso para professores
A necessidade de um mercado legal
Os fabricantes e distribuidores de armas de fogo possuem vários argumentos que defendem a importância dessa indústria, tanto a nível nacional quanto internacional. Nesta seção do módulo, serão descritos alguns dos principais desses argumentos, bem como os pontos de vista opostos, sem que se faça julgamentos de valor acerca da legitimidade de qualquer um deles.
Entre os incentivos à exportação de armas estão os seguintes: a necessidade de aumentar a segurança dos aliados ou parceiros; o desejo de restringir a capacidade de ação dos adversários; a expectativa de poder influenciar o comportamento interno ou externo dos países; e a criação de economias de escala necessárias para apoiar a indústria armamentista nacional (Thomas, 2017).
A demanda por armas pequenas e armas leves (APAL) decorre de três fontes principais: setores de segurança estatais, grupos não estatais organizados e demanda a nível micro por indivíduos (Attwood et al., 2006: 32). Esta seção do Módulo tratará da primeira dessas demandas – setores de segurança estatais. O Módulo 4 (O mercado ilegal de armas) desta Série de Módulos Universitários da E4J lida com outros aspectos.
As divergências entre os marcos jurídicos de diferentes países complicam ainda mais a legitimidade do mercado legal de armas. Uma transação pode ser legal no Estado de procedência da arma, mas ilícita no Estado que a recebe. Esta área cinzenta (que não deve ser confundida com o mercado paralelo) é discutida com mais detalhes no Módulo 6 (Normativas Nacionais Sobre Armas de Fogo).
O comércio de armas pequenas é inegavelmente grande. De acordo com estudos recentes, o comércio internacional de armas pequenas movimentou pelo menos US$ 6 bilhões em 2014 (Holtom e Pavesi, 2017: 13). O comércio de munição também desempenhou um papel importante, e representou 38% das transferências globais. O valor das remessas de armas de fogo militares aumentou 49% entre 2013 e 2014, passando de US$ 475 milhões a US$ 708 milhões. O valor das pistolas e revólveres transferidos, por sua vez, diminuiu 16%, passando de US$ 1 bilhão para US$ 845 milhões (Holtom e Pavesi, 2017: 13). É importante observar também que o custo das armas de fogo tem outra dimensão, relacionada ao impacto causado pela violência armada. Somente nos Estados Unidos, a violência armada resultou em US$ 8,2 bilhões em custos diretos (Follman et al., 2015).
O papel do comércio de armas no avanço da tecnologia
O comércio de armas tem sido um dos principais impulsionadores do desenvolvimento tecnológico desde seus primeiros dias. O motor a vapor, a linha de montagem e os satélites de posicionamento global são três bons exemplos do uso civil de técnicas e processos desenvolvidos para o comércio de armas.
A máquina a vapor
O motor a vapor atmosférico estático, projetado e desenvolvido por Thomas Newcomen em meados do século XVIII, era muito ineficiente, pois convertia apenas 1% da energia térmica do vapor em energia mecânica (Wailes et al., 2018). No final do século XVIII, James Watt e Matthew Boulton melhoraram a eficiência e o design do motor a vapor, o que possibilitou o início da Revolução Industrial e mudou o mundo (McKie, 2015). No entanto, o motor de Boulton e Watt não teria sido tão eficaz ou importante se não tivessem utilizado o sistema de perfuração de ferro desenvolvido por John Wilkinson em 1775, para fabricação de canhões. A precisão e confiabilidade do sistema de Wilkinson fizeram dele o principal fornecedor de cilindros para Boulton e Watt (Grace’s Guide to British Industrial History, 2018). O impacto da Revolução Industrial foi enorme, tanto economicamente quanto, mais recentemente, na mudança climática. Sem a tecnologia projetada para a produção de armas de fogo, isso não teria acontecido da mesma maneira.
A linha de montagem
Embora a manufatura tenha usado versões da linha de montagem há algum tempo, foi o trabalho conjunto do fabricante de machados Elisha Root e do fabricante de pistolas Samuel Colt que promoveu seu sucesso. Root era engenheiro e projetou um novo tipo de carimbo de metal para a Colt e uma nova fresadora. Além destes avanços, ele também produziu máquinas perfuradoras, medidores, acessórios e muitos outros dispositivos industriais para fabricação de armas. Este trabalho pioneiro, que padronizou a produção da Colt e tornou suas peças intercambiáveis, possibilitou um enorme salto na Revolução Industrial, viabilizando a transição da produção artesanal para a produção mecânica (Hoffman, 2014). Graças aos ganhos trazidos pelas invenções de Root, Colt conseguiu transformar sua fábrica no maior arsenal de armas do mundo (Simpson, 2018).
Satélite de Posicionamento Global (GPS)
O GPS tem sua origem em um projeto do Departamento de Defesa dos Estados Unidos chamado Navstar, que contava com 24 satélites na órbita da Terra (Howell, 2018). Inicialmente, o sinal desses satélites foi intencionalmente atenuado para uso civil em um processo chamado Disponibilidade Seletiva, mas foi interrompido em 2000 sob ordens do Presidente Bill Clinton (Howell, 2018). De acordo com a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), existem dois sistemas GPS paralelos: o Serviço de Posicionamento Padrão, disponível “para uso geral, de maneira contínua em todo o mundo, livre de quaisquer encargos diretos dos usuários” e o Sistema de Posicionamento Preciso, que é mais exato e “restrito às Forças Armadas dos EUA, às agências federais dos EUA e às forças armadas e governos aliados” (NASA, 2012: 1).
Como o exemplo do GPS demonstra, as pesquisas relacionadas a armas de fogo às vezes podem trazer benefícios para o mundo civil, especialmente em situações em que se destina mais financiamento a investigações para fins militares do que civis. No entanto, isso não pode ser uma justificativa para incentivar a pesquisa militar em detrimento da pesquisa civil, mas sim servir como uma base que permita um melhor intercâmbio de conhecimentos e benefícios entre os dois âmbitos. De acordo com a Campanha Contra o Comércio de Armas, somente em 2017 o Reino Unido exportou artigos militares (incluídas, entre outras coisas, as APAL) no valor de £ 6,6 bilhões, o que equivale a todo o gasto de capital do governo local em transporte em 2016/17 (HM Treasury, 2017). O comércio de armas é claramente importante para o desenvolvimento econômico e para a renda econômica dos estados, mas é primordial que este comércio seja equilibrado para a manutenção da estabilidade regional e global. A próxima seção deste módulo tratará do equilíbrio regional de poder e da relação com a soberania no contexto de armas de fogo.
O papel do comércio de armas na soberania e no equilíbrio regional de poder
Na década de 1970, Hamer (1976) defendeu em uma publicação que o uso da força pelos Estados em conflitos era o principal motor do comércio internacional de armas, e que este comércio provavelmente cessaria quando a força não fosse mais necessária. No entanto, esse argumento negligencia o fato de os Estados também exigirem armas para proteger sua soberania contra outros Estados, e também contra atores não estatais. Como reconhecia Arendshorst (2005: 1) “o comércio de armas pequenas desempenha um papel de destaque nas economias das nações em guerra e, particularmente, em conflitos intra-estaduais. A disponibilidade de armas pequenas torna possível a guerra, e sua disponibilidade contínua alimenta a prolongação da guerra."
Antes que fosse assinado o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), Bromund (2012) expressou sua preocupação de que o Tratado poderia representar um risco para a soberania dos Estados Unidos, pois imporia restrições aos Estados Unidos, em vez de afetar os regimes ditatoriais aos quais o tratado estava dirigido. Como apontou Lynch (2013), o Secretário de Estado dos Estados Unidos John Kerry elogiou o TCA por permitir que os Estados realizassem o comércio legítimo de armas como um direito soberano. Isto vincula-se às ideias de Weber (1919: 1) a respeito do monopólio do Estado sobre o uso da violência, uma vez que o Estado é simplesmente “uma comunidade humana que (com sucesso) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.
Esse argumento é o cerne do debate sobre a posse de armas pequenas, e é o mesmo nos níveis do indivíduo, de grupos criminosos e do Estado. Em essência, ele se resume a três elementos principais.
- Eu sou/nós somos honrados/pacíficos/de confiança;
- “Eles” não são e possuem armas de fogo;
- Eu preciso de armas de fogo para proteger a minha propriedade/defender o meu território/manter minha soberania.
De acordo com Yablon (2017), as conclusões do estudo de Donohue et al. (2017) pareciam ter desmascarado o argumento em relação a indivíduos, ao mostrar que os estados dos Estados Unidos que facilitavam o porte de armas de fogo tinham uma criminalidade violenta não fatal mais elevada do que aqueles que não o facilitavam. Dentro deste debate, o Departamento de Estado dos Estados Unidos defende que o direito de monopolizar o exercício legítimo da força é, por definição, parte da soberania do Estado. Ainda assim, o artigo 51 da Carta das Nações Unidas concede aos Estados o direito de usar a força em legítima defesa ou defesa de sua soberania. Armas pequenas e armas leves usadas para manter a ordem pública e para defender as fronteiras nacionais representam a manifestação mais visível e duradoura desses direitos básicos e, portanto, sempre permanecerão estreitamente identificados com questões de independência e soberania. Uma extensão lógica desses direitos é o direito de os Estados fabricarem legalmente ou adquirirem armas necessárias para a autodefesa (Departamento de Estado dos Estados Unidos, 2001). Esta informação é correta a nível jurídico e também na prática: geralmente, o direito soberano de um Estado fabricar armas de fogo não é objeto de debate, a não ser por aqueles ideologicamente comprometidos com a erradicação de todas as armas, legais ou ilegais.
O equilíbrio regional de poder está vinculado ao equilíbrio da soberania. A teoria do equilíbrio do poder provém da disciplina de Relações Internacionais e seria mais preciso referir-se a ela no plural, pois, como Wohlforth e colegas (2007: 157) apontam, “existem tantas versões da teoria do equilíbrio do poder que nem podemos listá-las todas”. Nas palavras de Schweller (2016), um sistema de “equilíbrio de poder” é aquele em que o poder mantido e exercido pelos Estados dentro do sistema é controlado e equilibrado pelo poder dos demais Estados. Assim, à medida que o poder de uma nação cresce a ponto de ameaçar outros Estados poderosos, emerge uma coalizão de contra equilíbrio para restringir o poder crescente, de modo que qualquer tentativa de hegemonia mundial será autodestrutiva”. No âmbito das armas de fogo, isso significa que, se um Estado de uma região começa a acumular uma grande quantidade de armas, seja por importação ou produção, pode passar a representar um risco para o equilíbrio regional de poder. O controle de exportação é uma forma de controlar isso, embora, é claro, não compreenda a produção nacional de armas.
O papel dos controles de exportação
O Tratado sobre o Comércio de Armas manteve o direito soberano dos Estados de fabricar armas de fogo e existe um forte incentivo econômico para que essas armas sejam exportadas. De acordo com Bromley e Griffiths (2010: 1), “uma das formas mais eficazes de impedir que armas pequenas e armamento leve (APAL) cheguem às zonas de conflito ou destinos embargados é por meio da negação de licenças de exportação em situações em que é provável que os bens sejam desviados dentro do país comprador ou reexportados em condições indesejáveis e, portanto, entrem no mercado ilícito. ” O Módulo 5 (O Marco Jurídico Internacional) e o Módulo 6 (Normativas Nacionais Sobre Armas de Fogo) tratam dos controles de exportação com mais detalhes. Os controles de exportação são normas seguidas pelos Estados em relação à exportação de armas. Eles se aplicam quando as armas são de fabricação privada ou estatal, e quando a suposta exportação é para um indivíduo ou um órgão do Estado.
Os Estados membros da União Europeia, por exemplo, devem seguir a Posição Comum da UE sobre o Controle de Exportação de Armas (2008), cujo Artigo 2 identifica oito critérios pelos quais os Estados devem julgar, caso a caso, os pedidos de exportação. Estes são resumidos como:
- Respeito pelos compromissos e obrigações internacionais dos Estados membros;
- Respeito pelos direitos humanos no país de destino final, e respeito pelo direito internacional deste país;
- Situação interna no país de destino final, em função da existência de tensões ou conflitos armados;
- Preservação da paz, segurança e estabilidade regionais;
- Segurança nacional dos Estados membros e de territórios cujas relações externas são de responsabilidade do Estado membro, assim como países amigos e aliados;
- Comportamento do país comprador em relação à comunidade internacional, especificamente sua atitude frente ao terrorismo, a natureza de suas alianças e o respeito pelo direito internacional;
- Existência de risco de que a tecnologia ou equipamento militar seja desviado dentro do país comprador, ou reexportado sob condições indesejáveis; e
- Compatibilidade das exportações de tecnologia ou de equipamentos militares com a capacidade econômica e técnica do país receptor.
O Acordo de Wassenaar sobre Controles de Exportação de Armas Convencionais e Bens e Tecnologias de Dupla Utilização (Acordo de Wassenaar) é, entre outras coisas, direcionado à exportação de armas de fogo. Em conformidade com a posição comum da União Europeia, o acordo de Wassenaar deixa claro que “A decisão de transferir ou negar a transferência de qualquer item será de responsabilidade exclusiva de cada Estado Membro” (Artigo 3), mas estabelece no artigo 7 uma lista dos documentos de melhores práticas que os Estados podem usar ao exercer sua discrição.
Tanto a Posição Comum da União Europeia como o Acordo Wassenaar têm um alcance jurisdicional limitado. Para uma visão mais ampla, devemos examinar o artigo 6 do Tratado sobre o Comércio de Armas, que proíbe a exportação de armas convencionais por parte de Estados que violam os embargos ou acordos internacionais do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Isto se refere particularmente àqueles envolvidos em “transferência ou tráfico ilícito de armas convencionais”, ou se for conhecido o uso das armas por esses Estados em violação da Convenção de Genebra de 1949, ou por crimes contra a humanidade. Essas transferências são proibidas ab initio, e o artigo 7 fornece uma lista semelhante aos critérios adotados em comum pela União Europeia, que deve ser considerada caso a caso. O artigo 7 coloca os Estados no dever de:
- “Avaliar o potencial que as armas convencionais ou componentes teriam para:
- contribuir ou prejudicar a paz e a segurança;
- serem utilizadas para:
- cometer ou facilitar uma violação grave do direito internacional humanitário;
- cometer ou facilitar uma violação grave do direito internacional dos direitos humanos;
- cometer ou facilitar um ato que constitua um delito em virtude das convenções ou protocolos internacionais relacionados ao terrorismo dos quais o Estado exportador é parte; ou
- cometer ou facilitar um ato que constitua um delito em virtude das convenções ou protocolos internacionais relacionados à criminalidade transnacional organizada de que o Estado exportador é parte”.
Seguinte: Os principais atores no mercado legal
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