Este módulo é um recurso para professores
Impactos indiretos das armas de fogo nos Estados ou comunidades
O impacto das armas de fogo é mais prontamente visto em conflitos e crime pela magnitude de homicídios e outras mortes violentas como indicado acima. Contudo, há consequências menos visíveis e, portanto, mais difíceis de mensurar e, frequentemente, mais duradouras, que precisam ser compreendidas para prevenir, reduzir e eliminar a violência associada a armas de fogo. Este módulo usa frequentemente o termo “armificação” (“weaponization”) para se referir ao impacto mais amplo das armas de fogo nas sociedades, e que descreve a situação onde as armas de fogo são facilmente acessíveis em um estado ou comunidade, e prontamente disponíveis para aqueles que matariam, machucariam, ou intimidariam outros por objetivos políticos ou criminosos.
Armas de fogo e desenvolvimento
A maioria das campanhas para reduzir violência armada, levando à adoção de instrumentos internacionais tais quais o Protocolo de Armas de Fogo e o Programa de Ação Sobre Armas Pequenas (PASAP), de 2001, e o Tratado sobre o Comércio de Armas, de 2014 (Nações Unidas, 2014), compartilharam a preocupação com o sofrimento humano associado com a disponibilidade e o mau uso de armas de fogo, e com seu impacto mais amplo no desenvolvimento e na sociedade. É nesta esteria que dados e estudos ad hoc foram, primeiramente, implementados, visando investigar os efeitos da violência armada no desenvolvimento econômico, social, político e humano. O Small Arms Survey (2003): Desenvolvimento Negado (veja também Batchelor e Krause, 2003), apresentou uma análise das relações entre violência armada e desenvolvimento humano de maneira mais aprofundada. A Tabela 1.3 fornece uma visão geral dos mais visíveis efeitos diretos e indiretos de conflito ou violência relacionada a crime, em um Estado ou comunidade.
Tabela 1.3 - Os efeitos de mau uso de pequenas armas no desenvolvimento humano (Fonte: Small Arms Survey, 2003: Capítulo 4: 131)
Desde então, a pesquisa nesse campo se desenvolveu consideravelmente, especialmente em conexão com as Metas de Desenvolvimento do Milénio e, mais recentemente, com a nova Agenda para o Desenvolvimento Sustentável - 2030. Mas a visão geral do impacto sobre o desenvolvimento e dos indicadores relevantes permanece um ponto de partida relevante para a introdução aos efeitos associados à aquisição, à transferência e ao acúmulo de armas de fogo em comunidades e sociedades. Enquanto alguns desses efeitos são auto-explicativos, outros precisam de mais explanação. Algumas dessas questões são consideradas com maior profundidade no Módulo 10.
Armas de fogo e Direitos Humanos
A relação entre armas de fogo e direitos humanos é complexa. Enquanto armas de fogo têm um papel crítico na aplicação da lei e nas operações militares para proteção dos direitos humanos e de segurança, elas também são frequentemente utilizadas para violar os direitos humanos.
Em 2015, o Conselho de Direitos Humanos requereu ao Alto Comissário de Direitos Humanos que preparasse um relatório sobre as diferentes formas em que a aquisição civil, posse e uso de armas de fogo foram efetivamente reguladas. O propósito era avaliar a contribuição que tais regulações têm na proteção dos direitos humanos, em particular o direito à vida e à segurança de uma pessoa, e identificar as melhores práticas que podem guiar os Estados a continuar a desenvolver regulações nacionais relevantes (Alto Comissário para os Direitos Humanos do Escritório das Nações Unidas, 2016). O relatório foi desenvolvido com contribuições dos Estados, agências das Nações Unidas, organizações internacionais, instituições nacionais dos direitos humanos, e organizações não-governamentais, baseado em um questionário padrão e publicado em 2016. O relatório concluiu que:
- É amplamente reconhecido que armas de fogo são a principal ferramenta usada para cometer atos de violência e crime;
- O Secretariado da Declaração de Geneva sobre Violência Armada e Desenvolvimentos encontrou que ao menos 754.000 indivíduos são vítimas de lesões não fatais por armas de fogo todos os anos.
- Outras consequências negativas e a longo prazo das armas de fogo que são menos documentadas includem dano não-físico tais quais trauma psicológico e estresse por ser ameaçado ou observar violência com armas de fogo;
- Muitos Estados concordam que armas de fogo foram “o meio primário” de violações de direitos humanos e abusos e que violência era frequentemente encorajada pela pronta disponibilidade e abundância de armas de fogo.
Tráfico ilegal de armas de fogo e violência impactam negativamente a segurança e o desenvolvimento, e assim podem diretamente ameaçar a realização das Metas de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, em particular a SDG 16, nomeadamente as de promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, prover acesso à justiça para todos e criar instituições efetivas, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Entretanto, a questão da relação entre armas de fogo e direitos humanos é mais complexa e, frequentemente, sujeita a debate.
As visões algumas vezes polarizadas podem ser exemplificadas observando as posições de duas conhecidas ONGs ativas nesse campo. Por um lado, está a posição tomada pela Amnistia Internacional em seu website “Gun Violence - Key Facts” onde discutem que a violência por armas infringe os direitos à vida, à segurança pessoal e à liberdade de expressão, entre outras coisas.
Por outro lado, há lobistas e grupos de interesse, tais como a United States National Rifle Association (NRA) que considera que manter e portar armas deveria ser vista como um direito constitucional baseado na Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América e reivindicam o direito à autodefesa como um direito humano básico. Mesmo assim, a controversa posição da NRA tem sido objeto de debates sobre quem são, de fato, os reais defensores da Segunda Emenda e o papel que a NRA teve na definição da legislação sobre armas de fogo (Erickson, 2018). Os debates, em grande parte confinados aos Estados Unidos, questionam o direito à autodefesa como um direito constitucional que, automaticamente, o eleva a um direito humano fundamental. A complexidade desse debate envolve questões mais amplas sobre o monopólio legal dos Estados (e obrigações) para usar força e armas de fogo para proteger seus cidadãos, versus o direito dos cidadãos de possuir e usar armas com o propósito de autodefesa e para “tomar a justiça em suas mãos” (Brettscneider, 2018). Esses problemas estão fora do escopo deste Módulo e, portanto, não serão totalmente abordadas aqui.
Independentemente do exposto, há uma aceitação geral da obrigação de todos os Estados de adotar legislações e medidas nacionais para regular e controlar armas de fogo, bem como o uso de força armada, incluindo o uso de armas de fogo por forças policiais, de acordo com, e em pleno respeito, aos instrumentos e normas internacionais de direitos humanos.
Armas de fogo, gênero e juventude
A questão do tráfico e do mau-uso de armas de fogo tem diferentes facetas e ângulos, e também uma importante perspectiva de gênero. Dentro disto, pode-se perguntar como armas de fogo se relacionam à violência e como essa se relaciona ao gênero.
Homicídios, incluindo homicídios com armas de fogo, afetam homens e mulheres de maneira diferente. De acordo com o Estudo Global de Homicídio da UNODC, “existe um viés regional e de gênero em relação às vítimas do sexo masculino em homicídios relacionados ao crime organizado e gangues, mas o homicídio interpessoal na forma de homicídio por parceiro íntimo / relacionado à família é muito mais distribuído entre as regiões e é, em média, notavelmente estável em nível global” (UNODC, 2013: 13).
Figura 1.8 abaixo mostra as taxas de homicídio com homens e mulheres vítimas por região:
Figura 1.8 Taxas de homicídio por região e por sexo a cada 100 mil habitants (2012 ou ultimo ano) (Fonte: UNODC, 2013: 28)
De acordo com o estudo da UNODC, armas de fogo foram menos usadas contra mulheres do que contra homens. Em média, menos de um terço dos homicídios com mulheres como vítimas foram cometidos com armas de fogo. Armas de fogo são frequentemente exibidas como forma de intimidar, ameaçar ou coagir mulheres. Entretanto, mulheres foram desproporcionalmente mais afetadas por homicídio por parceiro íntimo / relacionado à família, que homens: dois terços das vítimas globais são mulheres (43.600 em 2012) e um terço (20.000) são homens. Quase metade (47%) de todas as mulheres vítimas de homicídio em 2012 foram assassinadas por seus parceiros íntimos ou membros da família, comparado com menos de 6% dos homens vítimas de homicídio. Consequentemente, a presença de armas de fogo em casa pode aumentar o risco de a violência doméstica se transformar em homicídio, ou que as armas de fogo sejam usadas para cometer suicídio. Para uma leitura mais aprofundada, consulte o Módulo 9 “Violência contra as Mulheres” da Série Universitária de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal e o Estudo Global do UNODC Sobre Homicídio - Assassinato por gênero de mulheres e meninas (UNODC, 2018).
Homicídio também afeta desproporcionalmente os jovens. Globalmente, os grupos de idade de 15-19 e 30-44 anos contam para a vasta maioria de homicídios. Na América do Sul e América Central, a taxa de vítimas de homicídio do sexo masculino com idades de 15-29 anos é quatro vezes maior que a média global para esse grupo de idade. De acordo com o Estudo Global do UNODC sobre Homicídio, mais da metade das vítimas globais de homicídio têm menos de 30 anos de idade.
Impacto nos trabalhadores e nas instituições de saúde
Uma dimensão muitas vezes subestimada do impacto da violência armada se relaciona às instalações de cuidado de saúde, bem como sobre os trabalhadores da saúde. Ao redor do globo, a violência armada cria mais situações de emergência, e exige o destacamento de profissionais de saúde em áreas afetadas por níveis elevados de violência por armas de fogo. Um efeito claro dos altos níveis de violência por armas de fogo nos sistemas de saúde é o aumento do seu custo, por serem necessários mais recursos humanos e financeiros para enfrentar as emergências médicas. Os efeitos disto, a longo prazo, podem ser a deterioração do sistema de saúde do país como um todo. Países em desenvolvimento com sistemas de saúde menos robustos estão particularmente expostos ao risco de ver seu sistema entrar em colapso como resultado de um aumento súbito de violência armada.
O efeito da violência com arma de fogo nos profissionais da saúde é, entretanto, mais complexo. Esses trabalhadores enfrentam muitos desafios, incluindo demandas esmagadoras, recursos insuficientes, insegurança contínua, falta de formação, suprimentos e medicamentos, maior ansiedade e medo por parte de pacientes e familiares, acesso limitado, obstáculos burocráticos, estresse e exaustão. Bergen e Fisher (2003) referem-se ao impacto emocional de eventos traumáticos em profissionais da saúde como “trauma secundário”, que desempenha um papel significativo na saúde física e mental dos funcionários. Para aqueles que trabalham em regiões onde lesões por armas de fogo são relativamente raras, tiroteios em massa como os ataques de Paris, requerem que a equipe médica adote práticas similares às adotadas por aqueles que trabalham em conflito militar, mas sem necessariamente ter tido o treinamento apropriado. Isso coloca extrema pressão sobre os profissionais da saúde (CBC News, 2015).
Tabela 1.5 Número de ataques reportados aos cuidados de saúde em emergências em 2014 e 2015 (Fonte: Organização Mundial da Saúde, 2016: 4)
Trauma primário (Bergen e Fisher, 2013), ocorre quando trabalhadores da saúde são eles próprios vítimas de ataques violentos. Em um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), dados foram coletados em ataques, que foram definidos como “qualquer ato de violência verbal ou física ou obstrução ou ameaça de violência que interfira na disponibilidade, acesso e entrega de serviços de curativo e/ou de saúde preventiva durante emergências. Os países incluídos neste relatório são aqueles que enfrentam emergências agudas ou prolongadas, com consequências para a saúde resultantes de qualquer risco” (OMS, 2016: 2). O relatório da OMS sugere que nesse período de dois anos, 959 mortes e 1.561 feridos de ataques documentados envolviam profissionais da saúde. As estatísticas não diferenciam entre tipo de ataque, se foi cometido com armas de fogo ou outros meios, mas revela a dimensão da violência armada que não é sempre suficientemente vista.
Impacto das armas de fogo na segurança dos cidadãos
Crime doméstico
A disponibilidade e uso criminoso das armas de fogo têm um impacto claro na segurança dos cidadãos. Como visto anteriormente, armas de fogo são um importante facilitador e agravante para muitas formas de crime. A disponibilidade e o fácil acesso às armas de fogo tendem a aumentar os riscos de que conflitos interpessoais possam se tornar um encontro letal na presença de armas de fogo. Violência doméstica, ofensas à propriedade, e vários outros conflitos menores tendem a exacerbar e produzir dano sério se pelo menos uma das partes envolvidas tem acesso a uma arma de fogo. O uso de armas de fogo em situações de conflitos interpessoais vai aumentar, não apenas a severidade dos ferimentos, mas também o número de vítimas, quando comparado a situações nas quais há uma luta envolvendo somente o corpo-a-corpo.
Não é surpresa que países afetados por altos níveis de crime e violência frequentemente se deparam com desafios de proliferação descontrolada de tráfico de armas de fogo, e que a maioria das armas de fogo usadas em crimes tem origem ilícita. Isso significa que elas não foram usadas por seus donos legítimos, mas que foram previamente perdidas ou roubadas, ou traficadas ilicitamente e vendidas no mercado negro para grupos criminosos ou terroristas.
Embora muitos países no mundo tenham adotado medidas para controlar a fabricação, garantir estoques e regular a posse legal de armas de fogo, seu movimento e transferência, estruturas normativas fracas e lacunas legislativas continuam sendo um grande problema em muitas partes do mundo (consulte o Módulo 6: Regulamentos sobre armas de fogo). Os criminosos acharão mais ou menos difícil obter acesso a armas de fogo no mercado lícito, dependendo da estrutura legal em vigor e de sua capacidade real de execução. Ao buscar a aquisição de armas de fogo em países com fortes regimes regulatórios e boas práticas de execução, os criminosos provavelmente terão que adquiri-las por outros meios, os ilícitos. Isso inclui roubos (por exemplo, de entidades estatais, de casas de famílias ou de empresas de segurança privada), manufatura / conversão ilícitas ou tráfico ilícito de outros países com leis pouco rigorosas de posse, acumulações não controladas de excedentes ou sistemas de controle de fabricação ineficazes (Veja o Módulo 4: Mercado Ilegal de Armas de Fogo).
O resultado é um aumento na circulação e no uso de armas de fogo adquiridas ilegalmente no crime doméstico, especialmente por gangues e outros grupos armados. Em alguns países a situação da proliferação descontrolada e do tráfico de armas de fogo pode levar os criminosos a encontrarem armas mais capazes e letais à sua disposição que as forças de segurança internas da comunidade ou do Estado (Veja o Módulo 7: Armas de fogo, Terrorismo e Crime Organizado). As consequências dessa “armificação” (“weaponization”) das sociedades podem ser profundas e de longo alcance. Um exemplo de seu impacto a longo prazo é o aumento da presença, em muitos países, de armas de fogo em crimes domésticos comuns, tradicionalmente não relacionados a armas de fogo.
Estatísticas nacionais de crimes podem fornecer uma visão útil do uso de armas de fogo em diferentes crimes. Em nível global, a UNODC, através de suas Estatísticas de Tendências de Crimes (Crime Trends Statistics (CTS)), coleta regularmente dados acerca de crimes ocorridos nos Estados Membros, o que inclui informação sobre o uso de armas de fogo em crimes. No entanto, os dados sobre esse aspecto do crime com armas continuam difíceis de obter e inconsistentes em todas as regiões globais. Estudos regionais ou sub-regionais são difíceis de encontrar, precisamente por causa da falta geral de dados comparáveis neste campo, geralmente dentro da mesma sub-região.
O recente relatório de pesquisa financiado pela UE pelo Projeto EFFECT- Examining Firearms and Forensics across Territories (Examinando armas de fogo e forenses entre territórios) apurou que “atualmente, não é possível determinar a verdadeira extensão do crime por armas de fogo em toda a Europa, uma vez que o 'crime por armas de fogo' não é uma categoria de crime de notificação identificada, nem é consistentemente definido em legislação. Os países não registram consistentemente a presença de uma arma de fogo quando um crime é cometido / noticiado” (Bowen e Poole, 2016: 3). (O Módulo 11 analisará mais profundamente as pesquisas relacionadas a armas de fogo).
Um estudo recente, conduzido pelo projeto SAFTE (Duquet e Goris 2018), sobre os mercados ilegais de armas de fogo e aquisição de armas de fogo por redes terroristas na Europa, encontrou dados para apoiar o fato de que há um aumento no número de armas de fogo em mercados ilícitos na Europa, já que a Europa tem menos apreensões de armas de fogo que de roubos de armas de fogo. Esse aumento em fornecimento sugere que há mais armas disponíveis aos criminosos e terroristas no mercado negro, tornando mais fácil para eles adquirirem armas de fogo. Nessas circunstâncias, é sensato assumir que isto alimentará uma demanda adicional, particularmente entre gangues, conforme aumenta a necessidade de possuir uma arma de fogo para se defender de gangues rivais. Isso tem o potencial para fomentar uma corrida armamentista urbana, e subsequentemente o aumento de mortes e lesões (Duquet e Goris, 2018).
Crime organizado
Armas de fogo traficadas e adquiridas ilegalmente e seus usos criminosos são de grande relevância para o crime organizado. Armas de fogo representam os meios de se obter, manter e aumentar o poder desses grupos, além de serem facilitadores do crime. Elas também são uma mercadoria lucrativa para o tráfico a ser negociada por outros bens ilícitos, como drogas, metais preciosos ou patrimônio cultural saqueado ou traficado. O tráfico ilícito é a quintessência da maioria das atividades do crime organizado e, nele, as armas de fogo geralmente desempenham um papel de liderança.
Os grupos de crime organizado precisam de armas de fogo para atingir seus objetivos de ganho e manter o poder e usar esse poder para obter riquezas. O mesmo conceito se aplica tanto a gangues de rua quanto aos grupos de crime organizado que controlam as zonas de influência em nível urbano, regional e até mesmo nacional. Ganhar poder significa literalmente ir à guerra com adversários que têm os mesmos interesses. Em algumas áreas urbanas, visto por exemplo na América Central, membros de gangues têm fácil acesso a armas de fogo ilícitas vindas de estoques não protegidos, bem como traficados para a região, geralmente relacionados ao comércio de drogas ilícito na região. Membros de organizações criminosas estão frequentemente envolvidos em, e conectados a, uma ampla gama de redes ilícitas de todos os tipos (drogas, extorsão, tráfico de pessoas etc.). Sua demanda por armas é, nesse sentido, significativa e relativamente constante.
Os efeitos dessa demanda podem ser vistos globalmente, com um impacto direto no desenvolvimento. Durante uma conferência de 2017, na África, as autoridades declararam que “as armas ilícitas intensificam os conflitos e facilitam o crime organizado. Mesmo quando não ocorrem em conjunto, o tráfico de armas favorece crimes como tráfico de drogas, tráfico de pessoas, mineração, pesca e comércio ilegal de vida selvagem, e roubo de petróleo” (ENACT, 2017: 1). Essas questões são consideradas com mais detalhes no Módulo 7: Armas de fogo, terrorismo e crime organizado, e integralmente dentro da Série de Módulos Universitários da E4J sobre Criminalidade Organizada.
Terrorismo
A disponibilidade e acesso a armas ilícitas, incluindo armas de fogo, e seu uso criminoso são particularmente preocupantes no terrorismo, onde o uso de armas de fogo contribui para o aumento da ameaça e do poder destrutivo desses grupos e, portanto, seu impacto na paz, segurança e proteção dos cidadãos.
Um estudo do Instituto de Flemish Peace (Duquet et al., 2019), "Armed to Kill ", (Armado para matar), indica que os terroristas na Europa aumentaram o uso de armas de fogo/APAL em conjunto com explosivos e outros dispositivos. Essas descobertas não são exclusivas de uma região e são, de fato, confirmadas por um estudo recente de Nuwer (2018), que mostra que as armas de fogo são as ferramentas que criam mais fatalidades em ataques terroristas (ver também Bajekal e Walt, 2015).
Vários casos de diferentes regiões do mundo mostram como o uso de armas de fogo em ataques terroristas está aumentando. Muitos dos ataques terroristas mais recentes cometidos nos últimos três anos em países africanos, como Burkina Faso, Quênia, Mali, Níger e Nigéria, para citar alguns, foram cometidos com armas de fogo, em particular espingardas totalmente automáticas e dispositivos explosivos improvisados (DEI). Tendências semelhantes foram encontradas em países menos propensos a ataques terroristas. Uma comunicação de pesquisa publicada pela JAMA Internal Medicine compara a proporção de ataques terroristas cometidos com armas de fogo nos Estados Unidos com a proporção em outros países de alta renda, bem como a mortalidade em ataques com armas de fogo comparada à mortalidade em ataques por outros meios (Tessler, 2017). Dos quase 3.000 incidentes nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia entre 2002 e 2016, 9,2% foram cometidos com armas de fogo. Quase metade foram ataques explosivos e mais de um terço usava dispositivos incendiários. Apesar de as armas de fogo serem o modus operandi em menos de 10% dos incidentes, elas foram responsáveis por mais da metade das 566 mortes, ou aproximadamente 55% (Tessler, 2017). Os dados sobre mortes por modo de ataques terroristas são ilustrados na Figura 1.9 abaixo.
Figura 1.9 - Fatalidades por ataque segundo a arma utilizada
Os atos terroristas na Europa também revelam a crescente importância das armas de fogo para os terroristas. Esse foi o foco do relatório do Projeto SAFTE de 2018, que afirmou que na Europa as armas de fogo do mercado ilícito são mais frequentemente usadas pelos terroristas, mas pouco se sabe sobre sua aquisição e isso revela o maior problema de escassez de dados sobre o tráfico de armas de fogo na Europa (Duquet et al, 2018).
Essas questões são consideradas em maiores detalhes no Módulo 7: Armas de fogo, terrorismo e Crime Organizado.
Crescimento de empresas de segurança privada
Em muitos locais e regiões ao redor do mundo, gasta-se mais recursos em segurança privada do que em desenvolvimento. Esse é, entre outros fatores, o resultado do medo e da violência determinados pelo uso indevido de armas de fogo. A segurança humana significa, antes de tudo, a liberdade do medo. Nas regiões em que as forças de segurança do governo não têm capacidade e / ou legitimidade para fornecer segurança, esse vácuo é frequentemente preenchido por empresas de segurança privadas. A Figura 1.10, extraída de um relatório do The Guardian (Provost, 2017) no Reino Unido, ilustra que os gastos globais em seguro privado atualmente superam o Produto Interno Bruto (PIB) de vários países europeus e estão projetados para crescer em excesso de US$ 200 mil milhões até 2020.
Figura 1.10 'A indústria da desigualdade: por que o mundo está obcecado com a segurança privada' (Provost, 2017: Fonte: Freedonia, 2017; OCDE, 2017; Banco Mundial, 2017)
De acordo com esses dados, mais de 40 países - incluindo Estados Unidos, China, Canadá, Austrália e Reino Unido - contrataram mais trabalhadores para proteger pessoas, lugares e coisas específicas do que policiais com mandato para proteger o público em geral. Na Grã-Bretanha, 232.000 guardas particulares foram empregados em 2015, em comparação com 151.000 policiais. “O mercado global de serviços de segurança privada, que inclui guarda privada, vigilância e transporte armado, agora vale cerca de US$ 180 mil milhões (£ 140 mil milhões), e deve crescer para US$ 240 mil milhões até 2020. Isso supera em muito o orçamento total da ajuda internacional para acabar com a pobreza global (US$ 140 mil milhões por ano) - e os PIBs de mais de 100 países, incluindo Hungria e Marrocos” (Provost, 2017: 1). Isso serve para aumentar as desigualdades globais, pois as sociedades, comunidades e indivíduos que podem se dar ao luxo de investir em segurança privada contribuem para o deslocamento de atividades ilícitas para comunidades menos seguras e contra indivíduos menos protegidos.
Recorrer a serviços de segurança privados também é frequentemente o resultado de altos níveis de criminalidade e insegurança, e presença de grupos criminosos organizados, que provocam um aumento do sentimento de medo entre as comunidades e uma perda de confiança na capacidade do Estado de protegê-las. Em vários países, grupos de autodefesa foram estabelecidos nas últimas décadas em resposta à falha percebida no Estado em proteger seus cidadãos ou em exercer controle total sobre seu território. Se não forem adequadamente regulamentadas e controladas, as empresas ou entidades de segurança privada correm o risco de se envolverem em atividades criminosas. Alguns se desenvolvem como organizações cívicas paralelas e se corrompem/degeneram em organizações criminosas, como foi o caso da máfia Siciliana, que em sua origem era uma organização informal de cidadãos que procuravam se proteger na ausência de eficácia do Estado para o fazer:
“Os sicilianos se uniram em grupos para se proteger [de uma longa fila de invasores estrangeiros] e realizar sua própria justiça. Na Sicília, o termo "mafioso", ou membro da máfia, inicialmente não possuía conotações criminais e era usado para se referir a uma pessoa suspeita da autoridade central".
Em outros casos, grupos de autodefesa foram estabelecidos pelo próprio Estado, para responder às ameaças crescentes e iminentes, tal qual a chamada “Convivir” na Colômbia, que se estabeleceu em 1994 pelo decreto governamental para apoiar comunidades rurais de donos de terra, em resposta à crescente atividade de guerrilha e grupos de tráfico de drogas. Em apenas alguns anos, muitos desses grupos começaram a cometer abusos contra civis, engajados em atividades de contra-insurgência, e desenvolveram laços estreitos com grupos paramilitares locais. Em 1997, o Tribunal Constitucional da Colômbia declarou que os membros do CONVIVIR não podiam coletar informações de inteligência e não podiam empregar armas de nível militar. Outras restrições incluíram o aumento da supervisão legal e, no início de 1998, dezenas de grupos do CONVIVIR tiveram suas licenças revogadas, porque não entregaram suas armas e ocultaram informações sobre seu pessoal. Como resultado, muitos desses grupos foram dissolvidos e entregaram suas armas, e muitos outros se juntaram a grupos paramilitares existentes, como os “Autodefensores Unidos da Colômbia' (Autodefensas Unidas da Colômbia, ou AUC).
O aumento do medo e da insegurança causados por grupos criminosos pode levar a níveis crescentes de migração (forçada) e deslocamento interno. Um exemplo é o violento triângulo do norte da América Central.
Outro impacto em potencial do aumento da segurança privada é a redução do controle sobre a aquisição de armas para as empresas. Frequentemente, os mecanismos estatais para controlar tais aquisições e importações são inexistentes e as empresas fazem seus próprios acordos com os fornecedores. Isso resulta em falta de responsabilidade e essas armas podem cair em mãos ilícitas.
O crescimento dos serviços civis de segurança privada e o escopo ampliado de suas atividades em muitos países exigem mecanismos apropriados de regulamentação e supervisão para garantir o cumprimento das normas e regulamentos nacionais e internacionais e impedir ações ilícitas. A regulamentação das empresas de segurança privada pelo Estado é, muitas vezes, inexistente ou insuficiente, com o risco de criar importantes brechas legais e fomentar o desvio ilícito de armas. Os regulamentos diferem consideravelmente, variando da proibição total de tais empresas, como na Bolívia, a atividades mais ou menos regulamentadas. Em alguns países, essas empresas não podem possuir armas de fogo, em outros isso é permitido e o Estado emite licenças para os funcionários dessas empresas portarem armas de fogo.
Atualmente, não existem instrumentos, normas ou protocolos específicos das Nações Unidas que abordem os serviços civis de segurança privada. No entanto, o “Manual Introdutório sobre Regulamentação Estatal referente aos Serviços Civis de Segurança Privada e sua contribuição para a prevenção do crime e a segurança da comunidade” (UNODC, 2014a) identifica uma ampla gama de padrões internacionais que são relevantes e aplicáveis ao setor de segurança e que podem ser usados como uma ferramenta orientadora para fortalecer a regulamentação e o controle do Estado sobre as empresas de segurança privada. Isso é aparente, por exemplo, nas normas relativas à responsabilidade do Estado de prevenir o crime, proteger os direitos humanos e regular o uso da força, detenção e prisão, bem como as relativas à relação entre o setor privado e os direitos humanos e a proteção dos direitos dos trabalhadores. O manual recomenda que questões delicadas, como se os trabalhadores da segurança privada devem ou não ter poderes especiais ou o direito de portar armas, sejam explicitadas e regulamentadas conforme aplicável por lei, enquanto áreas em que não se espera que as entidades de segurança privada operem, sejam identificadas na legislação. Um sistema de licenciamento para operadores e fornecedores é recomendado como a pedra angular de um sistema regulatório eficaz. A melhor prática aceita é que o licenciamento se aplique a ambos, para que os padrões possam ser elevados, tanto nas empresas quanto entre os titulares de licenças individuais, e deve incluir licenças para armas de fogo, para cobrir os casos em que as empresas estão autorizadas a detê-las e a transportá-las.
De acordo com o estudo do UNODC, a experiência mostra que os serviços civis de segurança privada podem fornecer aos Estados um recurso que, se regulado adequadamente, pode contribuir significativamente para reduzir o crime e melhorar a segurança da comunidade, em particular por meio de parcerias e compartilhamento de informações com a polícia do estado. Os códigos de conduta e a legislação profissional precisam direcionar e controlar o compartilhamento de informações entre os atores de segurança pública e privada (UNODC, 2014a).
Seguinte: Respostas e abordagens nacionais e internacionais para lidar com o problema do tráfico ilícito e o acesso a armas de fogo
Regressar ao início