Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico 2: As vulnerabilidades das meninas em conflito com a lei

 

As meninas em contato com o sistema de justiça criminal representam um grupo particularmente vulnerável, por uma série de razões. Inicialmente, é importante registrar que existe um consenso internacional que todas as crianças, sem qualquer tipo de discriminação, devem receber uma proteção especial em decorrência da vulnerabilidade inerente à fase de desenvolvimento em que se encontram (Convenção Sobre os Direitos da Criança (Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 44/25); Declaração Universal dos Direitos Humanos (Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 217A). Além das vulnerabilidades associadas à relativa falta de maturidade das crianças, as crianças em conflito com a lei são especialmente vulneráveis, em razão das circunstâncias que provavelmente culminaram na sua prisão (pobreza, trauma, prévia vitimização, problemas mentais, atraso cognitivo, etc.). Ademais, as crianças privadas de sua liberdade estão expostas aos constantes riscos de violência física, violência sexual e danos psicológicos (para mais informações a respeito dessas questões, veja o Módulo 12 sobre Violência contra as Crianças, e o Módulo 13 sobre Justiça para as Crianças). Feitas essas considerações acerca do contexto geral de riscos enfrentados por todas as crianças em conflito com a lei, esta seção do presente Módulo se volta ao fato de que os riscos enfrentados pelas meninas são desproporcionalmente maiores comparados àqueles suportados pelos meninos, em virtude de estruturas profundamente arraigadas de desigualdade, discriminação e violência sexual e de gênero.

Embora as especificidades variem entre culturas, mulheres e meninas ao redor de todo o mundo sofrem com os “perversos e devastadores” efeitos da discriminação e da violência sexual e de gênero (United Nations SRSG on Violence Against Children, 2015, p. 1). A fim de melhor compreender os danos advindos da discriminação e da violência sexual e de gênero contra meninas inseridas no contexto da justiça criminal, é importante refletir sobre o papel que as presunções e expectativas de gênero, bem como as leis e estruturas sociais baseadas em estereótipos de gênero, desempenham na formação das experiências das meninas, incluindo seus caminhos para, e interações com, o sistema de justiça criminal.

[Uma] perspectiva de gênero é crucial para compreender como fatores estruturais tais quais acesso diferenciado à educação, recursos e normas rígidas de gênero determinam os diferentes desafios e oportunidades que meninos e meninas enfrentam (Ellsberg et al., 2017, p. 5). 

Em muitos países, as meninas que foram vítimas de abuso sexual infantil não têm acesso à justiça, e, ao invés, podem ser desacreditadas, processadas por crimes morais, renegadas por suas famílias ou comunidades, sujeitas à violência, ou mortas. Os casos em que infratores homens gozam de impunidade, enquanto meninas vítimas são as punidas, ilustram o quanto a discriminação de gênero permeia as estruturas cultural e legal. O caso prático intitulado “A Provação de Kainat”, apresentado pela Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Violência contra Crianças (RESG), ilustra o tratamento diferenciado recebido por meninas, tanto no contexto formal da justiça criminal como em contextos onde prevalecem práticas consuetudinárias discriminatórias. 

As abordagens à justiça criminal sensíveis à criança e baseadas em seus direitos exigem atenção aos diferentes riscos e oportunidades que enfrentam meninos e meninas, tanto na sociedade em geral, como em sistemas de justiça, seja enquanto vítimas, testemunhas ou supostos/reconhecidos infratores. O CEDAW dá especial atenção à importância de se reconhecer os desafios enfrentados pelas meninas: 

Deve ser dada às meninas um consideração especial (incluindo crianças e adolescentes, quando apropriado), pois enfrentam barreiras específicas para obter o acesso à justiça. Geralmente carecem da capacidade, social ou jurídica, para tomar decisões significativas sobre suas vidas em áreas relacionadas à educação, saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Podem ser forçadas ao casamento ou submetidas a outras práticas nocivas e a várias formas de violência (Comitê CEDAW, Recomendação Geral 33, parag. 24). 

Reconhecimento internacional das necessidades e vulnerabilidades específicas de mulheres e meninas encarceradas

Em reconhecimento às necessidades e vulnerabilidades específicas das mulheres e meninas encarceradas, as Regras de Bangkok enumeram considerações que devem ser aplicadas a mulheres e meninas presas, e seus filhos. As meninas correspondem à minoria das crianças julgadas em todo o mundo, mas os padrões e as normas das Nações Unidas exigem salvaguardas específicas para as meninas, em razão de sua vulnerabilidade particular (Regras de Bangkok, 2010, Regras 36-39; Regras de Beijing, 1985, Regra 26.4). Abaixo estão algumas das principais áreas nas quais as meninas encarceradas necessitam da proteção de seus direitos.

Globalmente, as mulheres e meninas suportam índices desproporcionais de violência sexual e de gênero, existindo uma correspondente super-representação de meninas que foram vítimas de abuso sexual e estão em contato com o sistema de justiça criminal (Saada Saar, 2015). Quando meninas têm um histórico de traumas desse tipo, faz-se especialmente importante a proteção de seus direitos e a prestação de serviços adicionais de apoio terapêutico, dentro do estabelecimento prisional. Por exemplo, as Regras de Bangkok estipulam regras para os procedimentos de revista pessoal de mulheres, meninas e seus filhos (2010, Regras 19-21), assim como fazem as Estratégias e Medidas Práticas Modelo das Nações Unidas para Eliminar a Violência Contra as Crianças no Campo da Prevenção à Criminalidade e da Justiça Criminal (doravante denominadas de Estratégias Modelo) (Parag. 41(c)(d)). Com efeito, as Estratégias Modelo identificam a importância de mudanças legislativas para proibir todas as formas de violência de gênero contra crianças, além de combater atitudes que sejam lenientes para com a violência de gênero e a violência contra crianças (parag. 11 (i); 9 (a)).  Esses padrões internacionais, bem como a doutrina jurídica, provinda de diversas partes do mundo, indicam que o acesso à justiça por parte de mulheres e meninas requer leis sensíveis às questões de gênero, bem como procedimentos que permitam que elas denunciem a violência sofrida (Spohn e Tellis, 2016; Fits-Gibbon e Walklate, 2018) (vide Módulo 10 para informações sobre vitimização secundária e atrito na denúncia/processamento de casos de violência sexual).

As meninas costumam enfrentar obstáculos significativos para acessar a justiça, seja enquanto vítimas de crime, testemunhas ou supostas infratoras. Frequentemente, a legislação e os procedimentos criminais administrativos e civis são inadequados para a proteção dos seus direitos, e políticas apropriadas a sua proteção não existem ou são insuficientemente implementadas. Muitos países não têm juízes, promotores, advogados e outros profissionais que sejam especializados e estejam qualificados para trabalhar com meninas, além de tampouco possuírem recursos suficientes para o treinamento necessário (Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Violência contra Crianças, 2015, p. 1).

A Convenção sobre os Direitos da Criança (Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 44/25) (CDC) requer que, nos casos em que se fizer necessária a privação de liberdade de crianças, enquanto último recurso, elas devem permanecer em ambiente separado dos adultos (1989, Artigo 37c). No entretanto, vários Estados Membros apresentaram uma reserva ao Artigo 37(c), incluindo Austrália, China, Finlândia, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Singapura, Suíça e o Reino Unido (1989). O Comitê da CDC tem pedido repetidas vezes que os mencionados Estados Membros retirem as suas ressalvas ou as declarações ao Artigo 37c e assumam o compromisso de assegurar que crianças e adultos sejam detidos separadamente (veja, por exemplo, as sucessivas Observações Conclusivas sobre Canadá CRC/C/15/Add.215, parag. 7, 2003; CRC/C/CAN/CO/3-4, parag. 9, 2012; e Singapura CRC/C/15/Add.220, parag. 45a, 2003; CRC/C/SGP/CO/2-3, parag. 6, 2011, a respeito das respectivas reservas e declarações ao Artigo 37.º).

A situação referente à mistura de faixas etárias, é ainda mais complicada quando se trata do encarceramento de meninas. Frequentemente, o baixo número de meninas detidas significa que elas serão mantidas com mulheres adultas, colocadas em solitárias, ou mantidas em instituições afastadas de suas casas (Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Violência contra Crianças, 2015, p. 5-6). O caso prático intitulado “A vulnerabilidade específica de meninas na prisão” ilustra os impactos desproporcionais que esses arranjos prisionais impróprios têm nas meninas.

 
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