Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Um: Introdução às finalidades da punição, da prisão e conceito de reforma prisional

 

Esta parte do Módulo explora, em primeiro lugar, a justificação teórica que está na base das finalidades da punição e, em seguida, examina os principais objetivos da prisão. O foco muda depois, para apresentar aos alunos a importância e o desenvolvimento da reforma prisional.

 

O que justifica a punição?

Se um indivíduo cometer um crime assume-se, muitas vezes, que se justifica que o Estado imponha uma punição. Algumas formas de punição causam danos. É, por isso, importante estabelecer o que justifica e sustenta a imposição de determinadas formas de punição.

Existem cinco principais justificações teóricas subjacentes às sanções penais que constituem a base das decisões de sentença (setencing decisions), nos diferentes ordenamentos: retribuição; incapacitação; prevenção; ressocialização; e reparação. Estas justificações teóricas estão definidas supra, nas palavras-chave, deste Módulo. Os alunos devem notar que os diferentes fundamentos subjacentes à punição são explicados de modo mais desenvolvido no Módulo 7, sobre Alternativas à Prisão, na Série de Módulos Universitários E4J sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal.

 

O que justifica a pena de prisão?

A prisão é utilizada como forma de punição em todos os países do mundo (para uma análise de estatísticas relativas às populações prisionais, de 223 países independentes e territórios dependentes, ver o World Prison Brief). Na maioria dos países, é a forma mais severa de punição que os tribunais podem impor. Os níveis de privação de liberdade aumentaram drasticamente em todo o mundo, desde a Segunda Guerra Mundial, embora mais rapidamente em algumas regiões do que em outras (Coyle et al., 2016). Os defensores da prisão argumentam frequentemente que a pena de prisão se justifica por incorporar os diferentes objetivos da punição supra expostos, não só através do seu efeito incapacitante e dissuasor, como também por possibilitar a mudança e reabilitação e considerando a ideia de que uma pena de prisão é uma resposta justa e proporcional ao crime (Scott, 2007). Embora haja muitas vezes desacordo quanto ao peso relativo que deve ser dado aos diferentes objetivos e à forma como as prisões devem funcionar, o direito internacional sublinha fortemente a importância da reabilitação e da reintegração para cumprir o objetivo principal da prisão. 

O artigo 10.3 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ICCPR) (Resolução GA 2200A (XXI)) estabelece o seguinte: "O regime penitenciário comportará o tratamento dos reclusos, cujo fim essencial é a sua emenda e a sua recuperação social". É significativo que o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos seja um tratado multilateral juridicamente vinculativo, que representa um consenso internacional no sentido de os reclusos serem tratados de forma humana, com observância da sua dignidade, e que as prisões se devem centrar na reabilitação e na transformação individual e não na punição. Do mesmo modo, a Regra 4 das Regras Nelson Mandela (2015) salienta igualmente a importância de preparar os ofensores para a sua reintegração social, enquanto forma de justificação da sua privação da liberdade: 

1. Os objetivos de uma pena de prisão ou de qualquer outra medida restritiva da liberdade são, prioritariamente, proteger a sociedade contra a criminalidade e reduzir a reincidência. Estes objetivos só podem ser alcançados se o período de detenção for utilizado para assegurar, sempre que possível, a reintegração destas pessoas na sociedade, após a sua libertação, para que possam levar uma vida autossuficiente e de respeito para com as leis.

2. Para esse fim, as administrações prisionais e demais autoridades competentes devem proporcionar educação, formação profissional e trabalho, bem como outras formas de assistência apropriadas e disponíveis, incluindo aquelas de natureza reparadora, moral, espiritual, social, desportiva e de saúde. Estes programas, atividades e serviços devem ser facultados de acordo com as necessidades individuais de tratamento dos reclusos.

No entanto, há poucos indícios de que a utilização da prisão como castigo tenha sido eficaz a nível mundial, para alcançar este objetivo (Coyle et al., 2016). Em contrapartida, a utilização em excesso das, e a dependência extremada nas, prisões a nível mundial conduziu a um reconhecimento crescente de que a sobrelotação e regimes com instituições penais deficientes, em todo o mundo, conduziram a violações significativas dos direitos humanos, com reclusos a viver em condições prisionais desumanas e degradantes, sem acesso adequado a serviços básicos ou a programas de reabilitação, prestados em função das suas necessidades individuais (UNODC, 2013a). Muitos presos estão sujeitos a tratamentos e condições terríveis que, consequentemente, colocam em causa a sua dignidade e valor enquanto pessoas (ver, por exemplo: Coyle et al, 2016; Reforma Penal Internacional -International Penal Reform, 2018; ver também o Módulo 1 desta série de Módulos Universitários). O objetivo deste módulo é avaliar as principais estratégias de reforma prisional e de segurança pública que podem pôr fim ao tratamento desumano dos reclusos e fornecer uma base sólida, para melhorar as condições prisionais em todo o mundo, a fim de assegurar que os direitos fundamentais dos presos e as necessidades humanas básicas sejam satisfeitos, bem como para limitar o uso excessivo da prisão. 

O significado da reforma prisional

Desde que a prisão foi imposta como castigo, foram feitas tentativas significativas para melhorar as condições das prisões. Em diferentes ordenamentos, a preocupação com o tratamento dos reclusos está no cerne do desenvolvimento da reforma prisional. Como observou Vivien Stern, a reforma prisional é "uma causa que tem tocado a imaginação de muitos, ao longo dos séculos, e continua a fazê-lo" (Stern, 1998, p. 248). As principais questões a abordar nesta secção incluem: Qual é a história da reforma prisional? Quais são os atores que moldaram a reforma prisional? Por que razão os direitos dos reclusos são importantes? 

Uma breve história da reforma prisional

A maioria dos historiadores prisionais do mundo ocidental data "o nascimento da prisão", para usar a frase de Foucault, no final do século XVIII, na era do Iluminismo e das revoluções europeias/americanas (ver Foucault, 1977; Ignatieff, 1978; Radzinowicz e Hood, 1986; Morris e Rothman, 1995; Gibson, 2011). Antes do final do século XVIII e do início do século XIX, o recurso à prisão era limitado e as prisões eram utilizadas principalmente para deter os devedores, os acusados a aguardar julgamento e as pessoas condenadas a aguardar a sentença - geralmente chicoteando, colocando a pessoa em estoque ou enforcando (ver Barnes, 1921; Blomberg e Lucken, 2010). À medida que foram abolidos os códigos penais severos e os rituais bárbaros dos castigos corporais, a prisão foi sendo cada vez mais utilizada pelos tribunais como método de punição, acabando por se tornar o meio mais comum de punição dos ofensores. O uso de prisões espalhou-se progressivamente pelo mundo, muito por influência dos governos coloniais, em países onde não existia um conceito de prisão indígena, ou pela mão de governantes indígenas, nesse caso por pressão dos poderes imperialistas ocidentais (ver Coyle, 2002; Zinoman, 2001; Bernault, 2003; Dikötter, 2002; Botsman, 2005; Gibson, 2011). 

Mas antes disso, nos anos de 1600, durante o período colonial da história americana, os grupos Quaker e outros uniram-se e para protestar contra a pena de morte e contra os castigos corporais, e incentivaram o recurso à pena de prisão como alternativa mais humana. William Penn (1644-1718), por exemplo, fundador e governador da colónia da Pensilvânia, aboliu a pena de morte para todos os crimes, exceto para o homicídio e o adultério. Penn declarou que "todas as prisões serão casas de trabalho" e que "todos os prisioneiros terão a liberdade para se sustentar quanto à roupa, cama, comida e outros bens necessários" (Barnes, 1922, p.70). Os prisioneiros aprenderiam um ofício como parte da sua transformação individual, para os auxiliar e para os preparar para a vida pós libertação. Embora as propostas de Penn não fossem implementadas de modo sistemático, a sua fé de que a prisão poderia servir como instrumento de transformação pessoal, continuou a influenciar aqueles que se dedicam à reforma prisional. 

Em 1787, um grupo dedicado à reforma prisional ponderou as ideias dos Quakers e um conjunto de cidadãos proeminentes, incluindo Benjamin Franklin (1706-1790) e Benjamin Rush (1745-1813), criou a “Sociedade de Filadélfia para o Alívio da Miséria das Prisões Públicas - Philadelphia Society for Alleviating the Miseries of Public Prisons (agora conhecida como "Pennsylvania Prison Society"). Os membros do grupo dedicado à reforma prisional, ficaram chocados com as condições sórdidas, com a falta de disciplina e bem assim com o tratamento de que os prisioneiros eram sujeitos. Todos os tipos de presos (mulheres, homens e crianças) viviam em conjunto e deviam pagar honorários aos guardas prisionais por provisões básicas, como alimentos, vestuário e aquecimento. Os carcerários vendiam bebidas alcoólicas aos reclusos, como forma de obter lucro e os edifícios prisionais não dispunham de condições adequadas, não havendo água potável nem saneamento básico. Como parte da sua estratégia de reforma, aquela Sociedade propôs a criação de prisões maiores e recomendou que os presos fossem encarcerados separadamente, de acordo com um sistema de isolamento. As condições de vida foram assim melhoradas, mas os reclusos foram confinados, de modo definitivo, às suas celas. Esperava-se que o isolamento e o silêncio encorajassem a reflexão individual, a transformação e a reabilitação - um sistema que ficou conhecido como "Sistema Pennsylvania" (the Pennsylvania System)ou "Sistema Separado" (Separate Systema), que influenciou mudanças significativas em muitos sistemas prisionais, em todo o mundo (ver Teeters, 1927; Sellin, 1970; Roberts, 1985; ver também Pennsylvania Prison Society). 

Ao mesmo tempo, surgiu uma abordagem concorrente que ficou conhecida como "sistema de congregação" (congregate system) ou "sistema de Auburn" (uma referência ao nome da prisão estatal de Auburn, no Estado de Nova Iorque). O modelo foi defendido por grupos que pugnavam por reformas sociais e por membros do clero, como Louis Dwight (1793-1854), que fundou a Boston Prison Discipline Society, em 1824 (Barnes, 1921). O modelo apelava ao isolamento dos prisioneiros durante a noite e ao trabalho conjunto durante o dia, mas sem qualquer comunicação verbal entre prisioneiros - uma regra que era aplicada com "disciplina militar e uso liberal de chicote" (Quen, 1975, p. 132). Embora os dois sistemas fossem diferentes, ambos se esforçaram por manter a disciplina, tendo por base regras rigorosas e mantendo a premissa de que o contacto entre prisioneiros deveria ser proibido, a fim de minimizar a influência negativa que os prisioneiros poderiam ter uns sobre os outros. A concorrência entre os apoiantes dos dois sistemas continuou até ao final do século XIX, altura em que a maioria dos Estados tinha adotado o sistema de congregação, com a vantagem de produzir rendimentos através da indústria (ver Roberts, 1985; Rotman, 1990). 

Alguns comentadores sustentam que os primeiros grupos de reforma prisional da América foram influenciados pelos escritos e iniciativas de filósofos e de grupos de reforma social do contexto europeu (para uma perspetiva alternativa, ver Rothman, 1995), que incluem o filósofo italiano Cesare Beccaria (1738-1794), o filósofo britânico Jeremy Bentham (1748-1832) e o reformador social John Howard (1726-1790), entre outros (ver, por exemplo, Barnes, 1921). Cesare Beccaria, por exemplo, na sua obra mais famosa, Dei delitti e delle pene – Dos Delitos e das Penas, publicada pela primeira vez em 1764, defendia vigorosamente a abolição da pena de morte e dos castigos corporais, um maior recurso à prisão, como forma de punição, e a melhoria na administração das prisões. Uma das ideias mais famosas de Jeremy Bentham foi a sua conceção de prisão "pan-óptica" (pan optical prison), em 1791. O modelo pan-óptico facilitou a separação total dos presos, permitindo que os guardas colocados em um local central a todos pudessem observar, mas permanecendo ocultos. Embora nunca tenha sido construído um modelo puramente pan-óptico de prisão, algumas das primeiras prisões na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos refletiam verdadeiramente as ideias de Bentham, relativamente à segregação e ao isolamento (para uma reflexão crítica, ver Foucault, 1977; Semple, 1993; Steadman, 2007). O reformador prisional John Howard publicou The State of the Prisons in England and Wales, em 1777, e An Account of the Principal Lazarettos in Europe, em 1789, com base numa extensa digressão e estudo das prisões em muitas jurisdições europeias. Howard ficou chocado com as condições desumanas e com o tratamento miserável dos prisioneiros e bem assim com a circunstância de os carcereiros viverem de honorários pagos pelos primeiros. Os seus esforços de reforma levaram a mudanças substanciais, incluindo a abolição dos honorários dos carcereiros e a melhoria da higiene e dos cuidados de saúde nas prisões (Howard, 1777; 1789; Morris e Rothman, 1995; Wilson, 2014; ver também The Howard League of Penal Reform). 

Em 1816, Elizabeth Fry (1780-1845) começou a visitar mulheres numa prisão londrina, tendo apresentado uma petição em prol de melhores condições prisionais, para melhorar a vida das mulheres e para potenciar sensibilização relativamente às mulheres presas e aos seus filhos. Em 1827, publicou um livro influente, intitulado Observações sobre a visita, Superintendência e Governança de Mulheres Presas (Observations of the Visiting, Superintendence and Government of Female Prisoners), abordando o tema pouco popular da prisão feminina e fornecendo dados sobre como melhorar as instituições penais (Fry, 1827). A autora queria que as prisioneiras fossem educadas e que vivessem com condições sanitárias. O seu trabalho inspirou muitas organizações, incluindo a Canadian Association of Elizabeth Fry Societies (ver também Zedner, 1995). Outra reformadora de destaque foi Dorothea Dix, dos Estados Unidos, que criticou as práticas negligentes em relação aos doentes mentais nas prisões, desafiando a ideia de que as pessoas com doenças mentais não podiam ser ajudadas e desempenhou um papel fundamental na criação de novas instituições, para o tratamento dos doentes mentais nos Estados Unidos e na Europa (ver Muckenhoupt, 2004). 

Muitos autores importantes e de grande influência também destacaram o tratamento desumano dos presos e a importância e necessidade de se promover uma reforma prisional. Em 1842, Charles Dickens visitou o modelo de isolamento de Filadélfia (o sistema separado ou de congregação), e ficou horrorizado com a desumanidade que testemunhou. Depois de visitar vários prisioneiros, a quem chamou de “enterrados vivos” e afastados do “mundo”, concluiu: 

Creio que serão poucos os  homens capazes de avaliar a dimensão da tortura e da agonia que este terrível castigo, prolongado por muitos anos, inflige aos que as sofrem; e ao analisar isso na primeira pessoa, ao avaliar o que vi espelhado nos seus rostos, e ao intuir o que me parece que eles sentem, fico ainda mais convencido de que existe uma profunda e terrível resiliência que ninguém, a não ser os próprios, consegue compreender, e que nenhum homem tem o direito de infligir aos seus semelhantes (Dickens, 2000, p. 111, publicado originalmente  em 1842). 

Outro exemplo é o autor Fyodor Dostoevsky, que dedica o romance Recordações da Casa dos Mortos à descrição da vida nas prisões da Sibéria. A personagem principal, Aleksandr Petrovich, condenado a dez anos de prisão, pela prática do crime de homicídio, retrata os efeitos do "belo sistema da solitária":

Que veicula resultados falsos, enganosos e alheios à pessoa. Esvazia a seiva vital do homem, enerva-lhe a alma, enfraquecendo-a e aterrando-a, e no final dá-nos uma múmia moralmente ressequida, meia enlouquecida, que se apresenta como modelo de penitência e de transformação (Dostoevsky, 1979, p.13-14, publicado originalmente em 1861). 

Embora formas brutais e públicas de castigos corporais tivessem sido substituídas por sistemas privados de disciplina prisional, aparentemente mais humanos, estes “não eram menos repressivos que os castigos corporais do antigo regime, e ainda mais insidiosos no seu objetivo de usar o corpo como instrumento para arregimentar a alma e reconfigurar a mente" (Foucault, 1977, citado por Gibson, 2011, p. 1042; para mais reflexão crítica sobre o desenvolvimento da prisão moderna, ver também Rothman, 1971; Ignatieff, 1978). 

Nos últimos anos, a história da reforma prisional na África, na Ásia e na América Latina tem vindo a ganhar destaque entre os académicos (ver por exemplo: Dikötter e Brown, 2007; Sherman, 2009; Gibson, 2011). Nestas regiões, muitos países enfrentaram grandes desafios, para conseguirem aplicar reformas prisionais em sistemas que simbolizam o domínio colonial. As dificuldades em reformular os sistemas punitivos existentes significaram, na verdade, a luta de muitos países para aplicar formas mais humanas de punição (ver Coyle, 2002). Em África, por exemplo, as prisões coloniais diferem das prisões europeias, na medida em que "procuraram reforçar a autoridade branca" e "constituíram não um substituto dos, mas um complemento aos castigos corporais" (Gibson, 2011, p. 1053; para uma visão sobre o tratamento das prisioneiras no Senegal colonial, ver Konaté, 2003 e 2013). A reforma das prisões coloniais em países da Ásia foi descrita como a história de uma "instituição tendencialmente estranha", vista “não só como um local de opressão colonial, mas também de tentativas sistemáticas de quebrar a casta e impor o cristianismo" (Arnold, 2007, p.147-149; ver também Yang, 1987; Anderson, 2003; 2007). Na América Latina, a reforma prisional tornou-se "parte de um processo de formação do Estado e da nação em que uma retórica sobre modernização e inovação era geralmente contrariada pela contínua - e geralmente violenta - exclusão das maiorias do exercício dos direitos democráticos e de cidadania" (Salvatore e Aguirre, 1996, p. 12; ver também Salvatore et al., 2001). É importante notar que muitos governos coloniais foram confrontados com uma forte oposição oriunda de prisioneiros que se opunham ao colonialismo e bem assim de presos políticos que, através das suas memórias, do contacto com jornais, de motins e de resistência, asseguraram que "as condições abismais nas prisões coloniais se tornassem uma questão global que não podia ser ignorada" (Gibson, 2011, p. 1062). No entanto, o legado colonial, continua a moldar as populações prisionais e a administração prisional em todo o mundo (Scott e Flynn, 2014). 

Durante o século XX, os grupos dedicados à reforma prisional centraram-se nos direitos dos reclusos, como meio de melhorar as condições prisionais e de aliviar os efeitos da privação da liberdade. Organizações como a ‘Preservação dos Direitos dos Prisioneiros’ (Preservation of the Rights of Prisoners), formada por prisioneiros e ex-prisioneiros no Reino Unido, e a União Americana das Liberdades Cívicas (ACLU), nos Estados Unidos, apresentaram uma petição a favor do direito a um processo justo e a condições humanas (Easton, 2011). O Projeto Prisão Nacional (National Prison Project) ACLU, criado em 1972, trabalha "para assegurar que as condições de confinamento sejam compatíveis com a saúde, segurança e dignidade da pessoa humana e que os prisioneiros conservem todos os direitos de pessoas livres que não sejam incompatíveis com a prisão". Desde a década de 1970, o projeto tem promovido um grande conjunto de ações coletivas, peticionando ao Governo dos Estados Unidos uma vasta gama de questões, incluindo a melhor assistência médica para os presos com HIV, tuberculose e cancro, a proteção dos presos contra agressões sexuais, lutando contra a sobrelotação prisional e, bem assim, contra condições prisionais desumanas (Easton, 2011, p. 39-40). 

Os direitos humanos dos reclusos também têm sido abordados em diferentes ordenamentos jurídicos, através de intervenção judicial e de fiscalização independente. Por exemplo, na Índia há notícia de que desde meados da década de 1970, vários casos permitiram a consolidação de jurisprudência em matéria de direitos humanos, sobre a administração das prisões e os direitos humanos dos reclusos (ver, por exemplo: Charles Sobraj vs. Superintendent Central Jail, Tihar, AIR 1978 SC 1514; Sunil Batra vs. Delhi Administration, AIR 1980 SC 1579). Num importante acórdão de 1996, o Supremo Tribunal da Índia identificou os principais problemas do sistema prisional. Apelou a que fossem tomadas medidas para resolver as seguintes questões: "sobrelotação, morosidade para o julgamento, tortura e maus tratos, negligência em matéria de saúde e de higiene, alimentação e vestuário inadequados, vícios prisionais, deficiências de comunicação, racionalização das visitas às prisões e gestão das prisões ao ar livre" (Harigovind, 2013, p.27; Ramamurthy vs. State of Karnataka, 1996, SCC (Cri) 386). Em termos de fiscalização independente levada a cabo na Índia, Kiran Bedi, que pugna pela reforma prisional, foi reconhecida pelo trabalho que desenvolveu como Inspectora-Geral das Prisões em 1994, por abordar a corrupção e as violações dos direitos humanos e por reformar a prisão de Tihar de Dehli (uma das maiores prisões do mundo), em linha com abordagens  terapêuticas e comunitárias (ver Bedi, 2007), embora muitas das suas reformas tenham sido entretanto abolidas (Codd, 2013). 

Nas últimas décadas, várias organizações, nacionais e internacionais, têm feito campanha e trabalhado para promover a importância dos direitos dos reclusos, em diferentes regiões do mundo, colaborando, muitas vezes de perto, com departamentos governamentais relevantes e funcionários prisionais locais, para reformar as condições nas prisões e implementar padrões internacionais (ver UNODC, 2013a). Por exemplo, o Projeto Prisões Africanas (African Prisons Project) (APP), tem trabalhado em toda a África para reformar as condições nas prisões, "promovendo a saúde e o bem-estar físico das comunidades prisionais, através de mais acesso aos serviços de saúde essenciais" e introduzindo "competências básicas, formação criativa e vocacional, para encorajar os reclusos a utilizar o seu tempo para se prepararem para a libertação". A iniciativa da APP "Justice Changemaker Training" (Trainamento para a Transformação da Justiça) também trabalha no sentido de desenvolver competências profissionais e de liderança de altos funcionários das prisões e da justiça penal, dotando-os de "educação formal, formação jurídica e contacto com as melhores práticas à escala global, para assegurar que os direitos dos reclusos sejam cumpridos" (ver também Capacity Development Projects e Human Rights Advocacy Projects – Projetos de Desenvolvimento de Habilidades e Projetos de Advocacia em Direitos Humanos – da Fundação Faraja). Na Ásia, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (International Committee of the Red Cross) trabalhou durante muitas décadas para apoiar os direitos dos reclusos e melhorar as condições prisionais. Por exemplo, o projeto Call for Action (Chamada por Ação) desenvolvido nas Filipinas, em 2007, visa abordar "as questões jurídicas e processuais que conduzem à sobrelotação das prisões, as deficientes condições de vida e as más condições de saúde dos presos, nomeadamente a propagação da tuberculose". Do mesmo modo, na República do Quirguistão, na Ásia Central, a União Europeia e o UNODC lançaram em 2009 o Projeto Apoio à Reforma Prisional na República do Quirguistão (Prison Reform in the Kyrgyz Republic), que visa contribuir para o reforço do Estado de Direito através da reforma do sistema prisional. 

Na maioria das sociedades do mundo, é possível encontrar pelo menos uma organização não governamental nacional ou internacional que trabalha para melhorar as condições dos reclusos e chamar a atenção da sociedade para os seus direitos (ver, por exemplo: Amnistia Internacional, Comité Internacional da Cruz Vermelhae Reforma Penal Internacional). A premissa central que unifica o trabalho dos grupos de reforma prisional são os direitos humanos, a ideia de que os reclusos são seres humanos que devem ser tratados a todo o tempo com "humanidade e com respeito à dignidade inerente à pessoa humana" (artigo 10.º, n.º 1 do ICCPR (Resolução GA 2200A (XXI)), apesar de qualquer crime que possam ter cometido. Por outras palavras, existem certos direitos e liberdades que são fundamentais para a existência humana e que não podem ser negados ou renunciados, incluindo o direito básico à segurança ou a um nível de vida adequado, tal como alimentação adequada, água, alojamento, saneamento, ventilação, vestuário, roupa de cama e oportunidades para realizar exercício físico (ver Coyle, 2002; Nações Unidas, 2005; Coyle et al., 2016). 

Por conseguinte, a prisão é cada vez mais reconhecida como uma punição grave e severa que deve constituir apenas uma perda do direito à liberdade e não significar restrição de outros direitos humanos ou a imposição de penas adicionais. Como observou Coyle (2002, p.42), a prisão não pode incluir "o risco de abuso físico ou emocional por parte do pessoal ou de outros reclusos" ou "o risco de doença grave ou mesmo de morte devido às suas condições físicos ou à falta de cuidados adequados" (Coyle, 2002, p.42). Do mesmo modo, Alexander Paterson, que foi nomeado Comissário das Prisões na Grã-Bretanha em 1922, afirmou, numa frase que ficou famosa, que as pessoas "são enviadas para a prisão como punição [as punishment] não para punição [for punishment]" (citado em Ruck, 1951, p.13, itálico nosso; ver também Robinson e Crow, 2009). Como referido anteriormente, o primeiro propósito da prisão deve ser a "emenda e a reabilitação social", para que os reclusos possam ser libertados como cidadãos cumpridores da lei e autossuficientes, o que é crucial para a redução da reincidência e a proteção do público (artigo 10.º, n.º 3, do ICCPR (Resolução GA 2200A (XXI)). Mais recentemente, a comunidade internacional afirmou este propósito da prisão, nas Regras Nelson Mandela, 2015, Regra 4; e na Declaração de Doha, 2014). 

Embora muitos indivíduos que pugnam pela reforma prisional tenham comprovadamente melhorado as condições dos reclusos, ao longo dos anos (ver especialmente Morris e Rothman, 1995), a verdade é que continuam a enfrentar desafios significativos no século XXI. Em muitos países, a legislação obsoleta, as políticas "duras com o crime" (tough on crime), a falta de vontade política e as pressões sociais, bem como os recursos limitados e os fracos sistemas de controlo, ameaçam o impacto do trabalho de reforma prisional e põem em causa o argumento dos direitos humanos que subjaz à importância da reforma prisional. Em todas as regiões do mundo, o recurso à prisão continua a levantar questões quanto à sua eficácia, equidade e humanidade. A próxima parte deste módulo examina as tendências e desafios contemporâneos das prisões, bem como a evolução das normas internacionais em matéria de direitos humanos. 

 
Seguinte: Tópico Dois: Tendências atuais, principais desafios e direitos humanos
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