Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico 3: Discriminação e violência contra indivíduos que se identificam, ou são percebidos, como LGBTI

 

Globalmente, os indivíduos que se identificam como LGBTI enfrentam uma vasta gama de leis e práticas discriminatórias. Entre elas: formas arraigadas de preconceito heteronormativo na comunidade, na escola e no ambiente de trabalho; vedações legais para certas práticas sexuais; vedações legais à liberdade de expressão, incluindo ao livre discurso e à livre associação; discurso de ódio homofóbico; e crimes de ódio homofóbicos, incluindo violência física e assassinatos. Pouquíssimos países adotaram uma posição firme em relação à revogação de leis discriminatórias e à promulgação de proteções legais contra a discriminação com base em sexo, gênero, orientação sexual ou características sexuais. O cenário mais comum é que pessoas LGBTI enfrentam, diariamente, as mais variadas formas de discriminação, tendo sua segurança física e seu bem-estar constantemente postos em risco, mas encontrando na lei pouca, ou nenhuma, compensação. O presente tópico apresenta uma visão geral sobre: (i) arcabouços legais que discriminam pessoas LGBTI; (ii) desafios enfrentados pelas pessoas LGBTI no sistema de justiça criminal; e (iii) o desenvolvimento de padrões internacionais para a efetiva proteção dos direitos humanos de pessoas LGBTI.

 

Leis e práticas legais discriminatórias dirigidas a pessoas LGBTI  

Existem, globalmente, 73 países que criminalizam relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo (Gerber, 2018). Tais leis colocam pessoas em direto conflito com a lei por discriminarem, expressamente, em razão de orientação sexual. Como o suposto “crime” diz respeito à orientação sexual do sujeito, percebida ou real, indivíduos suspeitos, acusados ou condenados por violação a essas leis perdem a habilidade de proteger aspectos privados de suas vidas, incluindo detalhes específicos de suas atividades sexuais. Cada interação com autoridades da justiça criminal é, por definição, uma ocasião para que o indivíduo seja estigmatizado e sujeito à intolerância, expressões de rejeição, reprovação moral ou violência. 

Em países onde a homossexualidade é vista fora dos limites socialmente aceites, as pessoas LGBTI costumam enfrentar estigmatização profunda, que pode impedir sua participação plena e equânime em todos os aspectos da vida pessoal e pública. Onde a homossexualidade é proibida, o sistema de justiça criminal pode impor um estigma (e punição) vitalício, mediante os mecanismos de proibição legal, condenação, registro de maus antecedentes criminais, e, em alguns casos, registro de agressores sexuais e esquemas de notificação pública. O caso Toonen versus Australia (N. 488/1992) foi um dos primeiros em que o Comitê de Direitos Humanos da ONU tratou da descriminalização das relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo. Em 1994, após comunicação do Sr. Toonen, Diretor Geral do Conselho Tasmaniano de AIDS, o Comitê decidiu que a criminalização da relação sexual entre pessoas do mesmo sexo viola o direito à privacidade (nos termos do Artigo 17.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (Resolução da Assembleia Geral 2200A(XXI)), e de não discriminação (nos termos do Artigo 2.º do PIDCP (Resolução da Assembleia Geral 2200A(XXI)), exigindo que as autoridades da Tasmânia revogassem a lei. Adotando o posicionamento do Comitê, o Governo da Commonwealth aprovou uma lei revogando a criminalização do sexo homossexual por parte da Tasmânia (Comissão de Direitos Humanos da Autrália, n.d.).

Desde da sua histórica decisão no caso Toonen versus Austrália,em 1994, o Comitê de Direitos Humanos da ONU tem expressado, reiteradamente, grave preocupação em relação a “leis e práticas discriminatórias e atos de violência cometidos contra pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero”, decidindo seguir “ocupando-se desta questão prioritária” (Resolução do Conselho de Direitos Humanos 17/19, 2011; Resolução do Conselho de Direitos Humanos 27/32, 2014). A criminalização das relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo é uma das mais claras manifestações de leis discriminatórias contra indivíduos em razão de sua orientação sexual. No entanto, mesmo quando países revogam leis que criminalizavam a homossexualidade, ainda existe a possibilidade de indivíduos terem antecedentes criminais em virtude de condenações anteriores. É animador, contudo, que, recentemente, algumas jurisdições têm envidado esforços no sentido de assegurar que antecedentes criminais como esses sejam excluídos.

Leis e práticas discriminatórias não se resumem à criminalização dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Por exemplo, alguns países proíbem, explicitamente, a distribuição de materiais sobre os direitos de pessoas LGBTI, sob o argumento de “proteção dos valores da família tradicional”. Muitos outros países não criminalizam relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas reduzem liberdades civis em razão de orientação sexual. Um exemplo, é a proibição de paradas do orgulho LGBTI e outras reuniões e eventos LGBTI por “razões de segurança”, a pretexto de antecipação da ocorrência de contraprotestos. Esse tipo de prática arbitrária de banimento ou não autorização de reuniões pacíficas organizadas por pessoas LGBTI, interfere no direito à liberdade de associação e reunião. É inequívoco o dever das autoridades do Estado e dos agentes de segurança de proteger aqueles que estão exercitando seu direito de liberdade de associação e reunião, independente de sua orientação sexual e identidade de gênero. Conforme apontado pelo Comitê de Direitos Humanos, “o exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias à proteção dos direitos de terceiros, da segurança nacional, da segurança ou ordem públicas, e da saúde ou moral públicas. Qualquer dessas restrições deve ser compatível com as disposições, metas e objetivos do Pacto e não devem violar as disposições sobre não discriminação nele presentes” (Comitê de Direitos Humanos, Comentário Geral no 34 (Artigo 19.º), parag. 26). A antecipação da ocorrência de contraprotestos ou de riscos à segurança pública, não podem ser utilizados como justificativas para restringir aquele direito. Nesse sentido, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em seu julgamento histórico no caso Alekseyev versus Rússia (No. 4916/07, 25924/08 e 14559/09), decidiu que proibir marchas de orgulho LGBTI, sob o argumento de mero risco de manifestações contrárias violentas, e risco à ordem e à segurança públicas, viola o direito à liberdade de reuniões pacíficas e de livre associação (para. 75-77). Para mais informações sobre o direito à reunião pacífica e as obrigações do Estado aquando do policiamento de manifestações públicas, confira o Módulo 4 sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo.

 

Pessoas LGBTI em contato com o sistema de justiça criminal – riscos e desafios específicos

O contato com o sistema de justiça criminal impõe uma série de riscos adicionais para aqueles indivíduos que são percebidos, ou efetivamente se identificam, como LGBTI. E isso independe de sua condição, se enquanto vítimas, testemunhas, acusados ou condenados pela prática de um crime.

Estudos demonstram que pessoas LGBTI enfrentam um risco aumentado de sofrer violência física e sexual, e que, na maioria dos casos, orientação sexual e identidade de gênero são os principais fatores na perpetração do abuso (Blondeel et al., 2018). De acordo com o Observatório de Pessoas Trans Assassinadas – uma iniciativa que monitora, sistematicamente e no mundo todo, homicídios de pessoas trans e de gênero diverso – entre 2008 e 2018, foram registrado 2982 assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso, correspondendo a uma média de um homicídio a cada dois dias (Trans Murder Monitoring, 2018). Apesar de índices tão altos de vitimização, a violência contra indivíduos LGBTI é frequentemente subnotificada. A título de exemplo, uma pesquisa conduzida no Reino Unido em 2012 constatou que um sexto de todos os participantes LGBTI tinha sido vítimas de crime de ódio ou sofrido algum incidente, nos últimos três anos; desse grupo, 75 por cento não havia denunciado o ocorrido às autoridades policiais (Stonewall, 2013, p. 116-117). Uma gama de fatores contribui para a subnotificação desses crimes, dentre eles, o medo de represálias, a ausência de mecanismos efetivos para a proteção de vítimas e testemunhas, e a falta de confiança no sistema de justiça criminal.

Nos casos em que atos de violência e discriminação homofóbicos ou transfóbicos são relatados às autoridades competentes, as vítimas LGBTI enfrentam uma série de violações, que vão desde a negligência dos agentes da polícia e falha no momento de registrar a notícia do crime, até a classificação inadequada da conduta criminosa (v.g., não registrar o crime como sendo de ódio ou registrar ataques físicos como crimes de menor potencial ofensivo) e experiências de vitimização secundária em decorrência de atitudes preconceituosas e discriminatórias dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei, nas fases de investigação, processamento e julgamento (Human Rights Council, 2015, parag. 24).

Os indivíduos que se identificam como LGBTI estão desproporcionalmente sujeitos a maus-tratos e violência sexual no contexto da justiça criminal, incluindo durante o período de detenção na polícia ou de prisão em estabelecimento penal, em parte porque os desequilíbrios de poder dentro dos sistemas de justiça criminal são informados por aqueles que persistem na sociedade em geral. A esse respeito, o Relator Especial das Nações Unidas Sobre Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes afirmou que “em estabelecimentos prisionais, normalmente, existe uma estrita hierarquia, e aqueles que estão na base da hierarquia, como pessoas gays, lésbicas, bissexuais e transgênero, sofrem dupla ou tríplice discriminação” (Conselho de Direitos Humanos, 2010, para. 231). O Relator Especial complementou “os membros das minorias sexuais estão desproporcionalmente sujeitos a torturas e outras formas de maus-tratos, porque não correspondem às expectativas de gênero socialmente construídas. De fato, a discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero tende a contribuir para o processo de desumanização da vítima, o que costuma ser uma condição necessária para que ocorram a tortura e os maus-tratos” (Nações Unidas, 2001, parag. 19).

Estudiosos também identificam que “a violência sexual na prisão resulta do encontro de normas sociais mais amplas e desigualdades com os aspectos corpóreos do encarceramento, que resultam na criação de um antro de relações de poder sexualizadas. Essas normas sociais e desigualdades estão relacionadas a uma masculinidade heteronormativa que marginaliza mulheres, pessoas trans, de gênero diverso, queers e não-heterossexuais, tratando-os como outros desiguais” (Simpson et al., 2016, p. 207). Estudos conduzidos em prisões masculinas em vários países indicam ser muito mais provável que homens que não se identificam como heterossexuais denunciem terem sido vítimas de coerção sexual (Beck et al., 2013; Steels & Goulding, 2009). Uma pesquisa australiana constatou que homens não heterossexuais tinham sete vezes mais chances de denunciar terem sofrido coerção sexual na prisão do que aqueles que se identificavam como heterossexuais (Simpson et al., 2016, p. 213).

Os riscos enfrentados pelos prisioneiros transgênero são especialmente graves. Além dos riscos já apontados referentes à marginalização de indivíduos que não se conformam às expectativas cisgênero, as pessoas transgênero ainda sofrem por serem encarceradas em unidades compatíveis com o seu sexo biológico, e não com o sexo/gênero com o qual se identificam. Essa questão se relaciona, ao menos em parte, com o problema mais amplo que é o reconhecimento legal de indivíduos transgênero e intersexo (para mais informações a esse respeito, veja os casos práticos sobre registro de nascimento no Módulo 13 sobre Justiça para as Crianças). Nos casos em que uma mulher transgênero é colocada em uma prisão masculina, por exemplo, em razão de sua Certidão de Nascimento e registro legal apontar seu sexo como masculino, ela fica gravemente sujeita à violência sexual por parte dos funcionários da prisão e dos presos. “Especialmente quando prisioneiras trans que fizeram a transição de homem para mulher são colocadas em unidades masculinas, em razão do sexo que lhes fora designado ao nascer, estabelece-se o caminho para abuso sexual e estupro” (UNODC, p. 108). Esse é um problema documentado no contexto da detenção de imigrantes (New York Times Editorial Board, 2015), bem como da prisão na própria justiça criminal, conforme ilustrado pelo caso de uma mulher transgênero presa durante uma denúncia de violência doméstica, que teve suas roupas retiradas durante a revista pela polícia, foi ridicularizada e colocada em uma cela com homens. Ela narrou que o tratamento recebido fez com que ela se sentisse como “se ela sequer fosse um ser humano. Como se sua segurança nem importasse” (Diamond, citada em Remnick, 2015). Algumas jurisdições têm instruções determinando que prisioneiros transgênero sejam questionados sobre onde se sentiriam mais seguros, ao invés de simplesmente designá-los para celas com base unicamente em sua anatomia de nascença (Remnick, 2015; La Ganga, 2016).

Convém destacar que indivíduos LGBTI podem também apresentar necessidades especiais quando aprisionados, em decorrência de traumas prévios sofridos por ocasião de discriminação ou violência em razão de sua condição de LGBTI. As orientações a seguir da UNODC apontam a importância de serviços especializados que tratem de traumas preexistentes e das consequências da discriminação ou trauma que ocorre dentro da prisão:

É provável que prisioneiros LGBT necessitem de apoio psicológico e do cuidado de profissionais que trabalhem com questões de saúde mental, especialmente, se eles tiverem sofrido abuso sexual, seja antes do encarceramento ou na prisão. Ainda que não tenham sofrido abuso sexual, a discriminação e humilhação que eles muito provavelmente enfrentarão nas prisões demandará atenção psicológica especial e programas para tratamento do estresse mental resultante. Prisioneiros LGBT que foram vítimas de estupro podem tentar recorrer à automutilação ou ao suicídio, razão pela qual precisam de supervisão e cuidado especiais (UNODC, 2009, p. 108).

É necessário pontuar, ainda, que a população prisional LGBTI pode sofrer discriminação a ponto de ter obstado seu acesso igualitário a serviços fundamentais dentro da prisão, por exemplo: serviços de saúde, contato com a família, acesso a canais de reclamações sem medo de represálias (UNODC, 2009). São necessárias abordagens conscientes das implicações da questão de gênero, para remover essas barreiras discriminatórias capazes de comprometer a saúde e o bem-estar dos prisioneiros LGBTI. Recomendações relevantes da UNODC a esse respeito incluem:

  • “Assim como os demais presos, os prisioneiros LGBT devem ser submetidos a um check-up médico completo ao entrar na prisão e devem receber tratamento médico equivalente ao da comunidade e ao recebido pelos demais presos. Os cuidados de saúde especiais para os prisioneiros LGBT podem incluir tratamentos para DSTs, inclusive HIV, terapia para a dependência química, aconselhamento para os problemas mentais decorrentes do sofrimento de violência sexual, estupro, dentre outros. Além disso, programas a respeito da prevenção contra o HIV/AIDS com fornecimento de material informativo a respeito das formas de transmissão e métodos para prevenção devem ser disponibilizados para todos os prisioneiros, incluindo os LGBT” (UNODC, 2009, pp. 116-117).
  • “As autoridades penitenciárias devem assegurar que os presos LGBT tenham acesso a todas as atividades disponibilizadas na prisão sem discriminação, e que eles sejam protegidos de atos de violência ou abuso quando forem participar” (UNODC, 2009, p. 117).
  • Devem ser implementados “programas especiais de aconselhamento para prisioneiros LGBT. Em tais ocasiões, seriam abordadas questões referentes à integração, segurança, saúde e preocupações correlatas, e ofertado o suporte necessário àqueles que foram vítimas de humilhação, abuso sexual e estupro, na prisão ou anterior ao encarceramento” (UNODC, 2009, p. 117).
  • Os “prisioneiros LGBT devem ter a possibilidade de apresentar queixas sobre abusos ou receio de abusos, sem risco de sofrerem retaliação por parte dos funcionários ou dos outros presos. Suas reclamações devem ser respondidas rápida e efetivamente. As vítimas ou vítimas em potencial de abuso, devem ser realocadas rapidamente para locais em que sua segurança possa ser assegurada e, nos casos em que o abuso já tenha acontecido, o prisioneiro deve receber todo e qualquer tratamento médico que se faça necessário” (UNODC, 2009, p. 118). 

Os riscos do comportamento discriminatório e violento em relação aos indivíduos LGBTI são evidentes no Caso prático 7: “Operação na Boate Tasty”. Esse caso também envolve questões tratadas de modo mais pormenorizado em vários Módulos, incluindo o Módulo 5 sobre Responsabilidade, Integridade e Supervisão das Forças Policiais; o Módulo 4 sobre Uso da Força e de Armas de Fogo; e no Módulo 11 sobre Acesso à Justiça pelas Vítimas.

O Manual do UNODC sobre o Tratamento de Prisioneiros com Necessidades Especiais destaca algumas boas práticas que levaram em consideração as necessidades de presos, incluindo:

Proteção legal contra a discriminação em razão da orientação sexual (África do Sul)

“Em 1996, a África do Sul se tornou o primeiro país a consagrar em sua Constituição proteções contra a discriminação em razão da orientação sexual; essa provisão levou a uma série de decisões judiciais, afirmando a equidade das pessoas gays e lésbicas e permitindo o avanço nos direitos das pessoas com parceiros do mesmo sexo. Em 1998, a Corte Constitucional da África do Sul, tomando por base o Artigo da Equidade previsto na Constituição sul-africana de 1996, em votação unânime, revogou as “leis contra sodomia” no país. Em uma impressionante decisão, a Corte decidiu que leis criminalizando conduta homossexual consensual violavam não só a garantia à privacidade, mas os princípios de equidade e dignidade” (UNODC, 2009, p. 113). 

Pondo fim à discriminação em razão de orientação sexual nas visitas conjugais aos presos (México)

“Em julho de 2007, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México anunciou que o sistema penitenciário da cidade havia permitido a primeira visita conjugal a uma pessoa presa que não era heterossexual, em consonância com a recomendação da Comissão. Nas prisões mexicanas, os indivíduos presos têm direito a receber visitas conjugais, e a maioria das unidades não exige que a pessoa visitante seja casada com a que está presa” (UNODC, 2009, p. 116). 

Penas alternativas e advocacia (Estados Unidos)

“Reconhecendo que as pessoas transgênero e intersexo sofrem com abusos extremos e brutalidade física, sexual e emocional quando são presas ... [o Projeto de Justiça para Transgêneros, Gêneros Variantes e Intersexo (PJTGI)] busca reduzir o número dessas pessoas que acabam indo para cadeias ou presídios retirando-as do sistema o quanto antes. Especificamente, o PJTGI auxilia pessoas TGI da região da Baía de São Francisco que estão aguardando julgamento a peticionar, requerendo aos juízes seu encaminhamento a programas que possam auxiliá-las a acessar serviços de saúde, sociais e econômicos dos quais necessitam, ao invés de simplesmente recolhê-las em cadeias ou presídios. Esses planos alternativos viabilizam o contato dos clientes com serviços e oportunidades para fazer frente às questões subjacentes que levaram à sua prisão. O PJTGI também advoga pelos direitos humanos e dignidade das pessoas TGI que, atualmente, estão encarceradas” (UNODC, 2009, p. 113).

 

Desenvolvimento de parâmetros internacionais para fortalecer a proteção aos direitos humanos dos LGBTI  

Por meio de normas internacionais de direitos humanos, Estados estabeleceram a obrigação de respeitar, proteger e assegurar os direitos de todas as pessoas que estejam sob sua jurisdição, independente de sua orientação sexual e identidade de gênero. Juntamente com o direito fundamental à não discriminação, os direitos à vida, segurança e privacidade; a proibição da tortura, dos maus-tratos, da discriminação e prisão arbitrária; a liberdade de expressão, associação, reunião pacífica e todas as demais liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais estão claramente estipuladas no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (Resolução da Assembleia Geral 2200A(XXI)), na  Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (CIEDR) (Resolução da Assembleia Geral 2106(XX)), na Convenção Contra a Tortura (Resolução da Assembleia Geral 39/46), na Convenção Sobre os Direitos das Crianças (Resolução da Assembleia Geral 44/25) e em outros instrumentos legais essenciais e vinculantes (Conselho de Direitos Humanos, 2015, para. 11-16).

Contudo, conforme tratado brevemente nas seções anteriores, as pessoas que se identificam como, ou são considerados LGBTI, continuam a enfrentar formas graves de violência, incluindo crimes de ódio e as formas mais brutais de violência sexual e de gênero (VSDG); bem como discriminação e várias violações de direitos humanos, quando em contato com o sistema de justiça criminal. O abuso persistente dos direitos humanos de indivíduos LGBTI, em todo o mundo, levou a comunidade internacional a prestar especial atenção ao assunto. De fato, nas últimas décadas, houve avanços significativos na seara internacional, no que se refere ao reconhecimento dos riscos e vulnerabilidades particulares das pessoas LGBTI, bem como para estabelecer medidas que devem ser tomadas pelos Estados e, em particular, pelas instituições de justiça criminal para respeitar, proteger e cumprir os direitos dos LGBTI.

Em 2006, um grupo de renomados especialistas internacionais em direitos humanos de diversas regiões e procedências – incluindo juízes, acadêmicos, um antigo Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Relatores Especiais, membros de órgãos de tratados e Organizações Não Governamentais – se reuniu em Yogyakarta, Indonésia, para elaborar um conjunto de princípios internacionais referentes à orientação sexual e à identidade de gênero. O resultado foram os Princípios de Yogyakarta (2007), documento que firma padrões legais internacionais vinculantes e orienta os Estados quanto à aplicação da legislação internacional de direitos humanos, em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Os Princípios cobrem uma série de direitos e padrões, incluindo a proibição de execuções extrajudiciais, de violência, tortura e maus-tratos, a garantia de acesso à justiça, direito à privacidade, não discriminação, liberdade de expressão e reunião. Em 2017, esses Princípios foram atualizados a fim de incluir, entre outros, uma articulação mais específica dos direitos dos indivíduos com características corporais diversas. Esses princípios revidados foram publicados como Princípios de Yogyakarta+10.

Entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, vários mecanismos de acordo das Nações Unidas, relatores especiais e expertos expressaram sua preocupação em relação à violência e discriminação contra pessoas LGBTI. Contudo, um grande ponto de virada foi em 2010, quando o Secretário Geral das Nações Unidas proferiu um relevante discurso sobre equidade para as pessoas LGBTI, conclamando os países a descriminalizarem a homossexualidade e a implementarem mecanismos de prevenção e combate à violência e discriminação contra esse grupo (OHCHR, n.d(b)).  Esse discurso do Secretário Geral impulsionou iniciativas das Nações Unidas visando a proteção e promoção dos direitos humanos de indivíduos LGBTI.

Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas adotou a “Resolução sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero” (2011). O documento é um marco, e o primeiro a focar exclusivamente nessas questões, tendo expressado grande preocupação em relação aos atos de violência e discriminação contra a população LGBTI; e requerido ao EACDH que solicitasse um estudo aprofundado relacionando a leis discriminatórias, práticas e atos de violência; e propondo meios pelos quais a legislação internacional possa ser utilizada para proteger de modo efetivo os direitos das pessoas LGBTI (para. 1).

A Campanha “Livres & Iguais” das Nações Unidas

Após a Resolução, a Organização das Nações Unidas lançou, em 2013, uma campanha de informação pública, global e sem precedentes, intitulada ONU Livres & Iguais, com o objetivo de promover direitos iguais e tratamento justo para pessoas LGBTI. Colaborando com atores nacionais e locais, a campanha ONU Livres & Iguais organizou eventos de conscientização em mais de 30 países e alcançou 2.4 bilhões de linhas do tempo nas redes sociais de todo o mundo, produzindo correntes de materiais vastamente compartilhados. Como parte dessa iniciativa, o EACDH publicou o livreto ‘Nascidos Livres e Iguais’, o qual identifica as principais obrigações dos Estados perante o direito internacional para com as pessoas LGBTI, as quais incluem: (i) proteger as pessoas de violência homofóbica e transfóbica; (ii) prevenir a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante às pessoas LGBT; (iii) revogar leis que criminalizam a homossexualidade e as pessoas transgênero; (iv) proibir a discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero; (v) proteger as liberdades de expressão, de associação e de reunião pacífica para pessoas intersexo e LGBT (OHCHR, 2012, p.13). Essas obrigações estabelecem padrões gerais para sistemas de justiça criminal ao redor do mundo respeitarem os direitos das pessoas LGBTI e as protegerem de todas as formas de violência e discriminação. Posteriormente, o EACDH publicou um relatório de acompanhamento intitulado “Vivendo Livres e Iguais”, apresentando recomendações mais concretas para que os Estados e as instituições de justiça criminal cumpram efetivamente as principais obrigações mencionadas, tais como:

* Adoção de leis específicas que proíbam duramente os delitos motivados por ódio e os discursos de ódio dirigidos a pessoais LGBTI.

* Descriminalização das relações sexuais entre adultos do mesmo sexo, das expressões de gênero transgênero e de outros atos direcionados à população LGBTI.

* Eliminação dos antecedentes criminais de indivíduos que foram condenados por crimes com base em sua orientação sexual ou sua identidade de gênero, reais ou percebidas.

* Investigação efetiva dos atos de violência e de incitação ao ódio e à violência contra indivíduos LGBTI; processamento e, com observância do devido processo legal, condenação dos infratores. Nesse sentido, estabelecimento de unidades especializadas dentro da polícia e do judiciário responsáveis pela investigação e/ou o julgamento de tais crimes.

* Prover mecanismos de proteção e segurança a vítimas LGBTI, incluindo abrigos seguros e acolhedores e livres de qualquer discriminação.

* Capacitação de funcionários da justiça e da polícia para compreensão das vulnerabilidades particulares das pessoas LGBTI e respeito aos princípios de proteção dos direitos humanos desse grupo, durante todas as etapas dos procedimentos da justiça criminal.

* Coleta de dados a respeito da violência e dos crimes de ódio contra as pessoas LGBTI, desagregação por orientação sexual e identidade de gênero. Análise dos dados a fim de identificar impunidade e subnotificação.

* Elaboração de orientações claras e compreensivas, para proteção das pessoas LGBTI, em ambientes de detenção, especialmente no que se refere a interrogatório, alocação, revistas íntimas, isolamento, acesso à saúde e outros serviços (OHCHR, 2016, p. 121-129). 

Com a adoção da Resolução 32/2 em 2016, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas nomeou um Especialista Independente sobre proteção contra violência e discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Esse especialista tinha dentre suas atribuições o dever de “trabalhar em cooperação com os Estados para impulsionar a implementação de medidas que contribuam para proteção de todas as pessoas contra violência e discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero        (Conselho de Direito Humanos, 2016), o que está diretamente relacionado ao trabalho das instituições de justiça criminal nacionais. A indicação por parte das Nações Unidas de um Especialista Independente indica que a proteção dos direitos das pessoas LGBTI é uma questão de alta prioridade na sua pauta de direitos humanos.

Considerando os significativos avanços nos regramentos internacionais de direitos humanos, nos parâmetros e na jurisprudência, os Princípios de Yogyakarta foram atualizadas em 2017, sendo adicionados dez princípios e as suas correspondentes obrigações estatais. Os princípios atualizados, também conhecidos como Yogyakarta+10, introduzem novos parâmetros em relação a, dentre outros, o “direito à integridade corporal e mental” (2017, Princípio 33), e o “direito à não ser objeto de criminalização ou qualquer forma de sanção decorrente, direta ou indiretamente de sua aparente ou efetiva orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais” (2017, Princípio 35), além de estipularem novas obrigações para os Estados com relação a Princípios de Yogyakarta já existentes, como é o caso do Princípio 9, que se refere ao tratamento humano durante a detenção. Outra atualização importante nos Princípios de Yogyakarta foi a inclusão de princípios de direitos humanos para pessoas intersexo, que não haviam aparecido na versão original do documento, de 2006. Em suma, Yogyakarta+10 é um guia para as instituições de justiça criminal para implementar normas internacionais de direitos humanos com a perspectiva de respeito, proteção e garantia dos direitos de todas as pessoas, levando em consideração sua diversidade de orientação sexual, gênero, expressão de gênero e características sexuais.

Os avanços supramencionados ocorridos nas duas últimas décadas indicam o crescente reconhecimento internacional das violências e discriminações enfrentadas pelas pessoas LGBTI ao redor do mundo, e dos esforços concentrados em prol de parâmetros claros e compreensíveis para proteção dos direitos humanos dos indivíduos LGBTI. 

Seguinte:  Tópico 4: Diversidade de gênero na força de trabalho do sistema de justiça criminal
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