Este módulo é um recurso para professores
Abordagem administrativa
A abordagem administrativa ao crime organizado transnacional faz parte de uma abordagem multidisciplinar e pode ser definida da seguinte forma:
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Uma abordagem administrativa ao crime grave e organizado inclui a prevenção da facilitação de atividades ilegais, negando aos criminosos a utilização da estrutura administrativa legal, bem como intervenções coordenadas ("trabalhar juntos em à parte") para perturbar e reprimir o crime grave e organizado e problemas de ordem pública. Instituto de Criminologia de Leuven, Universidade de Tilburg e Ministério da Segurança e Justiça dos Países Baixos, Administrative Approaches to Crime (2015) |
A abordagem administrativa deve complementar outras respostas (tais como as medidas judiciais) que os Estados implementam contra o crime organizado transnacional. Como exemplo, pode referir-se o Plano de Ação contra a Criminalidade Organizada, adotado pelo Conselho Europeu em 28 de Abril de 1997, que afirma que "a prevenção não é menos importante que a repressão numa abordagem integrada da criminalidade organizada, na medida em que o seu objetivo é reduzir o campo de manobra da criminalidade organizada. A União deveria dispor dos instrumentos que lhe permitam defrontar a criminalidade organizada em cada um dos passos do percurso que vai da prevenção à repressão e à ação penal" (para uma visão geral das principais abordagens à prevenção do crime, ver o Módulo 2 da Série de Módulos Universitários sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal).
É importante ter presente que o que se enquadra no âmbito da abordagem administrativa para combater o crime organizado transnacional varia de acordo com o Estado em questão. Isto porque o âmbito e o conteúdo do direito administrativo também variam de país para país. A abordagem administrativa pode incluir vários instrumentos que podem afetar tanto pessoas singulares como coletivas, incluindo medidas preventivas pessoais e a apreensão de bens (ver também o guia legislativo do UNODC para a implementação da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, em particular o artigo 7 sobre medidas para combater o branqueamento de capitais; o artigo 9 sobre medidas contra a corrupção; o artigo 10 sobre responsabilidade das pessoas coletivas; e o artigo 14 sobre disposição do produto do crime ou dos bens declarados perdidos).
A eficácia da abordagem administrativa dependerá do nível de corrupção dentro das instituições públicas de um determinado país. Quanto menos propensas forem as instituições à corrupção, mais promissoras serão as perspetivas de sucesso da abordagem administrativa. É claro que isto se aplica basicamente a todos os esforços destinados a combater a criminalidade.
Para exemplificar, os Países Baixos têm uma abordagem administrativa à criminalidade muito bem desenvolvida. É uma componente da resposta holística do país ao crime organizado. Baseia-se na utilização complementar da aplicação da lei e de medidas fiscais e administrativas. Esta metodologia requer cooperação e troca de informações entre as autoridades competentes. O principal objetivo da abordagem administrativa holandesa é reforçar e proteger a integridade do governo contra a infiltração e a cooptação por parte dos criminosos organizados. Ou seja, evitar que organismos públicos facilitem involuntariamente e/ou por falta de conhecimento atividades criminosas (ver também European Crime Prevention Network, EUCPN Toolbox Series No. 5 Abordagem administrativa – rumo a um quadro geral).
Caixa 2
Países BaixosNos anos 90, um escândalo que envolveu táticas de investigação policial, o subsequente inquérito parlamentar e um estudo sobre o âmbito e as formas de crime organizado, estimularam o desenvolvimento da abordagem administrativa holandesa. O estudo do Comité Van Traa revelou que grupos criminosos se tinham infiltrado na economia ilegal e legal da cidade de Amesterdão. Isto levou a cidade a combater o crime sistematicamente, utilizando tanto os instrumentos tradicionais de aplicação da lei como os instrumentos administrativos disponíveis. Estas políticas iniciais enfatizaram o leque de opções abertas às autoridades administrativas locais para agir contra o crime e as perturbações, tais como o rastreio de pessoas singulares e coletivas requerentes de licenças, subsídios ou financiamentos. No início dos anos 2000, a abordagem administrativa foi sendo cada vez mais integrada na política nacional. O atual programa de política nacional, Nederland Veiliger [Tornar os Países Baixos mais seguros], dá prioridade a várias categorias de crime organizado, incluindo o tráfico de pessoas, o tráfico de droga, o branqueamento de capitais, o cibercrime e a pornografia infantil. Ao contrário dos outros países selecionados (com exceção da Itália), os Países Baixos desenvolveram um quadro legislativo complexo para o rastreio e monitorização: a Lei da Administração Pública (Triagem de Probidade) (2002) ([a.k.a.]: legislação BIBOB). Instituto de Criminologia de Leuven, Universidade de Tilburg e Ministério holandês da Segurança e Justiça, Abordagens administrativas ao crime (2015) |
Um estudo jurídico e empírico realizado na União Europeia (Leuven Institute of Criminology e outros, 2015, p.427-428) identificou setores económicos com risco acrescido de infiltração por parte de grupos criminosos organizados:
- setor da hotelaria, restauração e bar
- setor dos jogos de azar
- produção de bebidas alcoólicas
- produção de medicamentos prescritos
- recolha e tratamento de resíduos
- setores da construção
- distribuição de bebidas alcoólicas
- casas de câmbio de moeda
- setor bancário
- operações de informação de crédito
- setor da prostituição
- setor imobiliário
- pessoas que trabalham com crianças
- setor da segurança (privado)
- advogados
- pessoal da polícia
- auditores
- pessoal penitenciário
- notários (Espanha, República Checa)
- serviços de táxi
- transporte comercial (de mercadorias e passageiros)
- comércio de explosivos, armas de fogo e munições
- comércio de bens usados
- eventos públicos
No quadro da abordagem administrativa, os setores económicos aos quais um país dedica mais ou menos atenção variam de acordo com as políticas, prioridades e circunstâncias específicas do Estado. Os docentes poderão considerar perguntar aos estudantes quais os setores económicos que correm maior risco de infiltração criminosa nos seus respetivos países.
O mesmo estudo apresentou vários instrumentos utilizados na implementação da abordagem administrativa. Estes incluem:
- Instrumentos de rastreio e monitorização - No âmbito das atividades comerciais e económicas, as autoridades governamentais podem ser autorizadas por lei a rastrear pessoas singulares e coletivas antes de lhes permitir o exercício de tais atividades, por exemplo, concedendo uma licença, concessão, autorização ou emitindo alguma outra decisão positiva. Muitas decisões administrativas, tais como licenças comerciais ou autorizações para o exercício de determinadas profissões, exigem que o requerente apresente documentos que atestem a sua boa conduta. Normalmente, isto envolve o rastreio dos antecedentes criminais do requerente. Alguns Estados permitem que tais documentos sejam solicitados no âmbito de uma decisão administrativa. Em Itália, por exemplo, as pessoas singulares e coletivas sujeitas a uma medida preventiva ou condenadas por participação numa organização mafiosa, sequestro para resgate ou tráfico de droga não podem obter qualquer tipo de subsídio, concessão, licença, financiamento, autorização policial ou outra contribuição financeira da administração pública italiana.
- Outros exemplos de controlo são os rastreios no contexto da concessão de subsídios a atividades comerciais ou empresas ou para contratos públicos. As caixas abaixo mostram a potencial relevância desta abordagem para combater o tráfico ilícito de migrantes, dada a infiltração de grupos criminosos organizados no sistema de asilo, que é financiado pelo Estado.
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‘Os migrantes são mais rentáveis do que as drogas': como a máfia se infiltrou no sistema de asilo italianoJoy, uma jovem nigeriana, (...) tinha deixado a sua família numa pequena aldeia no estado de Edo, na Nigéria, aos 15 anos de idade, e foi trabalhar para uma mulher rica que possuía um salão de beleza em Benin City, [a quem ela chamava 'maman']. Desde então, suspeitou que os seus pais a tinham vendido para ganhar dinheiro para os seus filhos mais novos. (...) Quando Joy fez 16 anos, passou por uma cerimónia que a ligava à maman através de uma maldição: se ela desobedecesse à maman, a sua família morreria. [Joy foi enviada/traficada ilicitamente para Itália, supostamente para trabalhar com a irmã da maman]. [Uma vez em Itália], pediu asilo na manhã seguinte à sua chegada, utilizando a sua própria data de nascimento e o nome da sua irmã mais nova. Quando os migrantes pedem asilo, podem ir e vir do centro [de acolhimento] em horários designados, enquanto esperam por notícias sobre o seu pedido, o que pode demorar meses. Após três dias, um homem que a Joy não reconheceu encontrou-a no acampamento e disse-lhe que deveria esperar todas as manhãs numa rotunda ao fundo da estrada do lado da entrada, e que eventualmente alguém a viria buscar. (…) Fazendo-se passar por requerentes de asilo, os traficantes atraem as mulheres para fora do centro com o pretexto de ir fazer compras ou outras excursões, e entregam-nas a mulheres nigerianas que controlam as redes de prostituição forçada. São então forçadas ao trabalho sexual sob a ameaça de violência, a maioria delas - como a Joy - aterrorizadas por uma maldição que as prende à escravidão. Vários centros tornaram-se objeto de investigação criminal, revelando corrupção a nível local e estatal, e infiltração por poderosas organizações de crime. Sempre pronta a explorar novas oportunidades, a máfia está a obter grandes lucros à custa dos migrantes. (…) Muitas das mulheres e raparigas nigerianas resgatadas dos barcos dos traficantes por instituições de caridade ou embarcações da guarda costeira são provenientes de pequenas aldeias em torno da cidade de Benin. A maioria é solteira e viaja sozinha. Muitas mulheres traficadas para escravatura sexual, receberam a garantia, por parte dos seus "patrocinadores", de que estes se encarregarão de obter os documentos de que necessitam assim que deixarem os centros. A outras, são fornecidos dados pessoais falsos, que devem utilizar nos seus requerimentos. A maioria das mulheres traficadas acabam por receber documentos falsos fornecidos por grupos italianos de crime organizado. (…) Em 2014, uma investigação conhecida como "Mafia Capitale" descobriu que um grupo criminoso tinha dirigido o governo municipal de Roma durante anos. O grupo, considerado pelos procuradores uma associação ao estilo mafioso, tinha desviado milhões de euros destinados a financiar serviços públicos. O grupo tinha também infiltrado centros de asilo em todo o país, comprando e vendendo nomes e informações sobre migrantes há muito desaparecidos, para manter o financiamento estatal por cada pessoa que chegava. Durante a investigação, um dos alegados chefes do grupo, Salvatore Buzzi, foi apanhado através de uma escuta telefónica a gabar-se de quanto dinheiro ganhou à custa dos requerentes de asilo. "Fazes ideia de quanto ganho com os imigrantes?", foi ouvido a dizer a um associado. "Eles são mais lucrativos do que as drogas". Buzzi e os seus associados foram condenados a décadas de prisão após um julgamento que terminou em 2017, embora as suas sentenças tenham sido reduzidas em recurso. Outro recurso está em curso. Em 2017, a polícia anti-máfia prendeu 68 pessoas, incluindo o padre da paróquia local, na cidade calabresa de Isola di Capo Rizzuto, onde um dos maiores centros de acolhimento de migrantes e refugiados do país se encontra em funcionamento há mais de uma década. Os investigadores dizem que os criminosos roubaram dezenas de milhões de euros em fundos públicos destinados à sobrevivência dos requerentes de asilo enquanto aguardam o desfecho dos seus processos. O General Giuseppe Governale, chefe das forças anti-máfia, disse que o centro era uma fonte lucrativa de fundos para a máfia calabresa, a 'Ndrangheta'. O Procurador Nicola Gratteri disse que os investigadores tinham registado em vídeo condições terríveis dentro do centro. "Nunca havia comida suficiente, e conseguimos filmar a comida que era oferecida", disse ele. "Era o tipo de comida que normalmente damos aos porcos". A máfia local tinha criado empresas falsas que estavam a ser pagas para prestar serviços, incluindo a alimentação dos migrantes. The Guardian, 31 de janeiro de 2018 |
- Poderes de ordem pública - As autoridades administrativas locais (municípios, bem como instituições com mandatos para supervisionar sectores específicos, como alimentação ou saúde) têm a responsabilidade de manter a ordem pública. Podem ser autorizadas a fazê-lo pela legislação nacional, mas também podem regular-se a si próprias através da emissão de decretos ou regulamentos locais. Os poderes de ordem pública incluem poderes de inspeção e o poder de intervir quando a ordem pública é perturbada, por exemplo através da revogação ou encerramento de instalações ou da aplicação de multas administrativas.
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BélgicaO artigo 134 (quinquies) da Nova Lei Municipal (‘New Municipality Act’) diz respeito à competência policial do Presidente da Câmara na luta contra [o tráfico ilícito de migrantes]. Para combater tais fenómenos administrativamente, o Presidente da Câmara foi autorizado a encerrar estabelecimentos (...) se houver sérios indícios de (...) tráfico ilícito de migrantes no estabelecimento em causa. Enquanto que o artigo 9bis da Lei da Luta contra a Droga (‘Drugs Act’), (...) se refere a instalações privadas abertas ao público, o artigo 134 quinquies da Nova Lei Municipal não dá nenhuma qualificação aos estabelecimentos. Poder-se-ia argumentar, com base nesta última informação, que o Presidente da Câmara também pode encerrar instalações que não estejam abertas ao público. Neste caso, esta competência seria mais abrangente do que a competência acima referida para fechar temporariamente um estabelecimento aberto ao público em virtude do artigo 134 (quater) da Nova Lei Municipal. Uma decisão de encerramento só pode ser tomada se as (...) infrações de tráfico ilícito de migrantes ocorrerem efetivamente no estabelecimento em causa, o que significa que a mera utilização deste estabelecimento para permitir ou facilitar (...) o tráfico ilícito de migrantes não é suficiente. Contudo, dada a gravidade dos crimes, é suficiente uma única ocorrência dos indícios graves estabelecidos para encerrar o estabelecimento. Leuven Institute of Criminology, Tilburg University and Dutch Ministry of Security and Justice, Administrative Approaches to Crime (2015) |
- Perda de bens fora do âmbito do direito penal - Enquanto alguns Estados regulam estas medidas principalmente através do direito penal (como os Países Baixos e Espanha), outros tratam-nas tanto ao abrigo do direito penal como do direito civil e/ou administrativo (como a Suécia, Inglaterra e País de Gales, República Checa, Itália e Alemanha). Neste último grupo de Estados, a apreensão civil e/ou administrativa de bens é complementar à apreensão ao abrigo do direito penal. A apreensão de bens fora do âmbito do direito penal pode retirar receitas importantes aos traficantes, por exemplo, apreendendo um veículo utilizado no tráfico ilícito de migrantes para impedir a continuação da utilização desse veículo para atividades criminosas.
- Outras medidas - Estas incluem (i) dissolução dos conselhos municipais, (ii) proibição de residência e (iii) proibição de associação, entre outras (Leuven Institute of Criminology e outros, 2015, p. 453-454).
É importante notar que a aplicação de medidas no âmbito da abordagem administrativa não deve ignorar os direitos fundamentais e as salvaguardas jurídicas que protegem contra decisões injustas do governo, tais como o direito a um julgamento justo e à revisão judicial. Os potenciais sujeitos de uma sanção administrativa devem ter direito a um julgamento justo antes da decisão administrativa. O direito a ser ouvido permite que a pessoa conteste factos e a decisão ou medida pretendida. A decisão da autoridade administrativa deve ser devidamente justificada, com os motivos apresentados à parte afetada.
A abordagem administrativa (com o seu quadro legal e instrumentos práticos) pode ser aplicada tanto para prevenir como para reprimir o crime. As autoridades administrativas competentes podem aplicar os seus respetivos poderes de forma independente, bem como cooperar com outros organismos públicos no desempenho das suas funções. As autoridades administrativas podem também cooperar com entidades privadas, ao mesmo tempo que realizam intervenções destinadas a reduzir a criminalidade.
Nota: O Instituto de Criminologia de Leuven, a Universidade de Tilburg e o Ministério da Segurança e Justiça holandês realizaram um estudo abrangente sobre a aplicação da abordagem administrativa ao crime (Instituto de Criminologia de Leuven e outros, 2015). Dada a ainda limitada gama de fontes abrangentes sobre a matéria e o facto de o referido estudo ser particularmente rico em exemplos práticos, recorre-se frequentemente a ele como fonte de ilustração neste Módulo. Obviamente, isto não impede o professor de complementar ou substituir os exemplos fornecidos por outros, principalmente se forem centrados na região ou no país em causa. De facto, o professor é aconselhado a fazê-lo.
Seguinte: Atividades complementares e papel dos atores da justiça não criminal
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