Este módulo é um recurso para professores
Tópico Dois: Justificação da pena
O que justifica a punição? Qual a sua razão de ser? Esta parte do Módulo examina os principais objetivos da pena estatal. Existem cinco objetivos principais para a punição criminal, que serão em seguida brevemente enunciados: retribuição; incapacitação; dissuasão; reabilitação e reparação.
Retribuição
A retribuição é provavelmente a justificação mais antiga de punição e pode ser encontrada nas teorias de Kant e de Hegel (Brooks, 2001). É a circunstância de o indivíduo ter cometido um ato ilícito que justifica a punição, e a punição deve ser proporcional ao mal cometido. A premissa subjacente foi resumida pelo filósofo Kurt Baier nos seguintes termos:
(a) Todos os condenados por um delito ou crime merecem punição;
(b) apenas os condenados por um delito ou crime merecem punição;
(c) a severidade da punição não deve ser menor do que a gravidade do crime;
(d) a severidade da punição não deve ser maior do que a gravidade do crime (Baier, 1977, p. 37, ênfase no original).
A doutrina da retribuição afirma que os indivíduos são seres racionais, capazes de tomar decisões informadas e, portanto, a violação da lei é uma decisão racional e consciente. Nesta linha de pensamento, sustenta-se que a sanção seja baseada no mal cometido, ou seja, “deve ser previamente estabelecido um conjunto de sanções que variem em função da gravidade do crime, e que têm por referência crimes de gravidade diferenciada: penas mais leves para crimes menos graves, penas mais graves para crimes mais graves” (Cavadino e Dignan, 2007, p.44). Embora esta ideia de retribuição como justificação da punição criminal tenha uma base intuitiva, a verdade é que esta teoria tem sido alvo de diversas críticas. Por exemplo: alguns autores têm suscitado questões sobre a dificuldade de ordenar ou classificar as infrações e as devidas penas a aplicar. Será possível e plausível desenvolver uma escala de punição para todos os crimes que seja satisfatória? Outros autores questionam ainda a premissa da qual parte a doutrina da retribuição, concretamente, a ideia de que os indivíduos atuam racionalmente, o que pode contribuir para a afirmação de que a retribuição torna o crime racional. Também tem sido sugerido que punir indivíduos por terem agido erradamente, não se dirige especificamente às causas subjacentes do crime ou às condições sociais que conduziram à sua prática, exigindo por isso que a punição compreenda uma abordagem mais ressocializadora (Hudson, 2003; Zedner, 2004).
Incapacitação
A teoria da incapacitação pressupõe que o Estado tenha o dever de proteger a comunidade de futuros erros ou danos, e que tal proteção possa ser concedida de alguma forma através da aplicação de uma pena de prisão ou incapacitação. Por esta via, previnem-se crimes futuros, incapacitando ou restringindo a liberdade do ofensor, os seus movimentos ou sua capacidade de cometer um novo crime. A forma mais extrema de punição incapacitante é a pena de morte, mas existem outras formas, incluindo prisão, o recolher obrigatório, a prisão domiciliar, o monitoramento eletrónico e a apreensão da carta de condução dos condutores que conduzam em estado de embriaguez. Porém, a pena incapacitante tem sido objeto de críticas severas, tanto por razões morais como por motivos empíricos (ver, por exemplo: Zedner, 2004; Binder e Notterman, 2017). Uma das grandes preocupações que esta teoria suscita, resulta do facto de as sentenças incapacitantes punirem efetivamente indivíduos por crimes ainda não cometidos. Um outro risco inerente à teoria da incapacitação diz respeito à circunstância de que alguns indivíduos que cometeram crimes e que, por isso, estão presos ou incapacitados, mesmo que assim não fosse, não voltariam a reincidir. Além disso, como Barton (2005, p.464) sugere, "mesmo que os métodos de previsão fossem precisos, existem naturalmente questões morais e éticas sobre encarcerar indivíduos pelo que podem fazer em vez de os encarcerar pelo que realmente fizeram" (itálico como no original). Esta justificação da punição mostrou ser altamente popular entre políticos e a imprensa, desempenhando um papel significativo para o aumento do recurso à prisão em muitos ordenamentos.
Prevenção (“Deterrence”)
As teorias de prevenção recorrem à filosofia utilitarista de Jeremy Bentham, que expressa a máxima "a maior felicidade do maior número" (ver, por exemplo: Shackleton, 1972; Baujard, 2009). Na mesma linha da teoria da incapacitação, a prevenção justifica a punição com base no que será possível alcançar no futuro. Os teóricos afirmam que a dor causada ao agressor pela punição é compensada pelos benefícios sociais implicados. Foi feita uma distinção entre dois tipos de prevenção: a especial e a geral. A prevenção especial tem por principal objetivo a imposição de uma punição, para dissuadir os indivíduos que já tenham praticado crime de o fazer novamente. A prevenção geral, é justificada pela possibilidade de dissuadir potenciais ofensores. A lógica desta teoria decorre da premissa de que a imposição de uma punição criminal dissuade os indivíduos de cometer crimes, o que permitirá às pessoas em geral beneficiar de maior segurança na vida em sociedade (Hudson, 2003).
A prevenção tem sido frequentemente criticada por não ser eficaz ou moralmente aceita. Os estudos efetuados são geralmente inconclusivos no sentido de determinar se a punição dissuade potenciais ofensores de cometerem futuros crimes. Além disso, a prevenção pode permitir uma desproporção entre a punição aplicada e o dano que haja sido efetivamente causado, a punição de inocentes e a punição por crimes que ainda não tenham sido cometidos (Hudson, 2003; ver também von Hirsch et al., 1999).
Reabilitação
A teoria da ressocialização parte da premissa de que a punição pode prevenir futuros crimes, através da modificação do comportamento do ofensor. A ressocialização pode envolver programas de educação e de formação profissional, aconselhamento, programas de intervenção ou a aprendizagem de novas competências. A premissa comportamental desta teoria da punição é que o comportamento criminoso não é uma escolha racional, mas determinado por pressões sociais, distúrbios mentais ou derivado de problemas conjunturais (Ashworth, 2007).
Apesar de dominante no discurso penalista, este ideal foi desacreditado no início dos anos 70, o que se deve em parte ao facto de os resultados de pesquisas realizadas sugerirem que as medidas penais, destinadas a reformar os ofensores, não eram mais eficazes na prevenção da reincidência do que a aplicação de uma pena de prisão (Martinson, 1974; Cullen e Gendreau, 2001). Além disso, as abordagens ressocializadoras têm sido criticadas por terem uma visão demasiado determinista do comportamento, que coloca ênfase excessivo nas condições sociais e culturais, dedicando pouca importância à capacidade dos indivíduos de tomarem decisões e de fazerem as suas próprias escolhas. É, também, relevante notar que esta teoria de punição pode colidir com o direito a não ser punido desproporcionalmente, para além de não estabelecer quaisquer limites concretos, não só quanto ao tratamento a ser aplicado no caso como também relativamente ao tipo de intervenção necessária. Não obstante o que vai dito, é preciso notar que a necessidade de reforma continua a ser a pedra de toque de muitos sistemas penais, justificando-se a essa luz formas de punição que ofereçam respostas e reduzam os riscos e as necessidades associadas aos ofensores (cf. Zedner, 2004).
Reparação
No plano internacional, a teoria da reparação está identificada desde o final do século XIX (UNODCCP, 1999), sendo que nos anos mais recentes a atenção que lhe é dedicada tem vindo a aumentar. A justificação da reparação no âmbito do processo penal baseia-se na ideia de que os crimes devem ser reparados, exigindo-se aos ofensores que levem a cabo ações que sejam capazes de reparar o mal causado às vítimas. A esta luz, a restituição e a compensação às vítimas, às suas famílias ou comunidades deve, portanto, ser um objetivo central da justiça criminal.
De acordo com a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (Resolução GA 40/34) (Resolução da AG 40/34), a restituição deve incluir, "a restituição de bens ou a devida indemnização pelos danos ou prejuízos sofridos, o reembolso de despesas decorrentes da vitimização, a prestação de serviços e reposição de direitos" (1985, Artigo 8º). Os defensores desta teoria argumentam que a restituição pode ser instituída ao longo das diferentes fases processuais, podendo ser complementar à sentença ou constituir uma pena em si mesma. Pretende não só compensar alguns dos danos causados às vítimas, mas também proporcionar um "meio socialmente acolhido de responsabilizar o ofensor que, ao mesmo tempo, seja passível de o reabilitar" (UNODCCP, 1999, p. 47).
Nos últimos anos tem havido um grande incentivo para o desenvolvimento da Justiça Restaurativa e suas práticas, que envolvem os principais protagonistas do crime praticado (concretamente, o Estado, o ofensor e a vítima), com o objetivo de propor uma resposta apropriada à infração, visando fins restaurativos como a reparação, não só da vítima como também da comunidade (Ashworth, 2007). Se não houver uma vítima individual ou identificável (ou se a vítima não estiver disposta a participar), a reparação pode ser feita à comunidade, como um todo, através de trabalho comunitário, ou do pagamento de um valor pecuniário. As intervenções da Justiça Restaurativa variam significativamente entre jurisdições e podem incluir as seguintes práticas restaurativas: mediação vítima-ofensor (victim-offender mediation); conferência de grupos familiares (family group conferencing); círculos restaurativos, como os círculos de cura, de paz ou de sentença (healing, peace making or sentencing circles); painéis comunitários (community panels); e, prisões restaurativas (restorative prisons) (cf.Dünkel et al., 2015; Dignan, 2005; Crawford e Newburn, 2003; Edgar e Newell, 2006; Johnston, 2014; ver também UNODC, 2006b).
Os críticos das abordagens reparadoras, porém, argumentam que, em vez de capacitar os intervenientes, tais iniciativas podem, na verdade, comprometer os direitos das vítimas e dos ofensores. Os ofensores podem padecer com a falta de garantias processuais, com a ausência de um processo justo e com falta de acesso a aconselhamento jurídico. Já as vítimas, podem sentir-se sobrecarregadas pela responsabilidade quanto ao futuro dos seus ofensores e podem sentir-se pressionadas a perdoar. Todavia, os defensores da Justiça Restaurativa e da teoria da reparação argumentam frequentemente que tal crítica "nasce de um pessimismo injustificado ou da falta de vontade de pensar para além dos ditames convencionais relativos ao paradigma da punição" (Zedner, 2004, p.106). Para mais informações sobre Justiça Restaurativa, cf. o Módulo 8 na Série de Módulos da Universidade E4J sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal.
Em suma, existem cinco razões ou justificativas fundamentais para a imposição de punições criminais, sendo que nas modernas sociedades todas têm defensores e críticos. É importante notar que os objetivos dos sistemas de justiça criminal descritos supra não são estáticos, diversamente, eles podem evoluir, mudar e até ser objeto de fusões ao longo do tempo, muitas vezes devido aos valores hodiernamente defendidos e bem assim às prioridades políticas (ver Garland, 1990). Embora exista um grande debate em torno do peso relativo que deve ser atribuído aos diferentes objetivos na administração da justiça criminal, é cada vez mais reconhecido que a punição retributiva deve ser equilibrada com outras considerações que contribuirão para a ressocialização do ofensor, para a reparação da vítima e para a proteção da sociedade a longo prazo.
A verdade é que os diversos objetivos da punição criminal podem ser alcançados através de medidas não privativas de liberdade. Por isso a comunidade internacional reconheceu que as respostas eficazes da justiça criminal exigem que as entidades com competência para proferir condenações tenham à sua disposição um amplo leque de penas aplicáveis. O Comentário ao Regulamento de Tóquio afirma que as autoridades que proferem sentenças "devem ser orientadas pelo princípio de que a prisão deve ser uma medida de último recurso" e que "devem ser feitos todos os esforços para aplicar medidas não privativas de liberdade" (1993, p.17). Reconhecendo os diferentes objetivos da administração da justiça criminal, as Regras de Tóquio enfatizam que os Estados devem "assegurar um equilíbrio adequado entre os direitos dos ofensores, os direitos das vítimas e a preocupação da sociedade com a segurança pública e a prevenção do crime" (1990, Regra 1.4). Ao mesmo tempo, as Regras incentivam os Estados membros a "desenvolver a possibilidade de aplicação de medidas não privativas de liberdade nos seus sistemas jurídicos," para reduzir o recurso à aplicação da pena de prisão e "racionalizar as políticas de justiça criminal, tendo em conta o respeito pelos direitos humanos, as exigências de justiça social e as necessidades de reabilitação do ofensor" (1990, Regra 1). De acordo com o Comentário às Regras de Tóquio, as medidas não privativas de liberdade têm "um valor potencial considerável para os ofensores, bem como para a comunidade", e podem ser uma sanção apropriada para um vasto conjunto de crimes e para diferentes tipologias de ofensores (1993, p.5).
As secções seguintes deste Módulo vão analisar a utilização e implementação de uma vasta gama de sanções não privativas de liberdade que estão disponíveis para as autoridades competentes, em diferentes fases do processo de justiça criminal.
Seguinte: Tópico Três: Alternativas ao Processo
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