Este módulo é um recurso para professores 

 

Fontes de armas de fogo ilícitas

 

As armas de fogo ilícitas podem vir de várias fontes, que determinam, em parte, o tamanho do tráfico ilícito. A maioria dos tipos de fontes ilícitas podem ser categorizados em três grupos principais:

  • Fabricação ilícita
  • Roubo ou desvio
  • Conversão, reciclagem e reativação de armas de fogo
 

Fabricação ilícita

O Protocolo de Armas de Fogo das Nações Unidas considera ilícitas as armas fabricadas sem licença ou autorização por parte de uma autoridade competente do Estado, ou no caso da fabricação ou montagem sem uma marcação em conformidade com as exigências do Protocolo. As armas de fogo fabricadas com peças e componentes traficados ilegalmente também são ilícitas e sujeitas a sanções criminais.

Atualmente, a maioria das armas de fogo começa seu ciclo de vida como produtos legais, mas a fabricação ilícita ocorre de várias maneiras.

Antes do advento da produção em larga escala nas fábricas, as oficinas artesanais de pequena escala produziam todas as armas de fogo. Essa forma artesanal de fabricação ainda persiste em algumas partes do mundo. Os ferreiros da África Ocidental, por exemplo, produzem uma variedade de armas pequenas, incluindo pistolas e espingardas (Vines, 2005: 352–53). A fabricação artesanal de armas de fogo é bastante desenvolvida em Gana; o Paquistão também produz uma grande variedade de armas pequenas e artesanais de baixo custo, incluindo revólveres e espingardas (Small Arms Survey, 2011). A maioria dessas produções não é totalmente reconhecida nem autorizada pelas autoridades nacionais e, embora violem a lei do país, assim como os instrumentos regionais e internacionais com os quais o país se comprometeu, são toleradas até que um enquadramento legal mais compreensivo seja aplicado, como mostra o caso de Gana.

Produtores amadores podem copiar e fabricar projetos originais de armas de fogo em oficinas caseiras ou mais sofisticadas. De acordo com o Firearm Blog (2014: 1), “submetralhadoras 'caseiras' produzidas ilicitamente aparecem com destaque nas apreensões de armas de fogo pela polícia na América do Sul, em particular no Brasil. Essas armas variam em nível de sofisticação, embora um grande número pareça ser produzido de forma semiprofissional. Em um estudo recente sobre 14.488 armas de fogo apreendidas entre 2011 e 2012 apenas em São Paulo, 48% das submetralhadoras analisadas eram supostamente caseiras”.   

As fábricas clandestinas não são uma prerrogativa apenas de determinados países e regiões. A título de exemplo, Salcedo-Albarán e Santos (2017) relatam dois casos de fábricas ilegais de armas identificadas e desmontadas na Austrália e nas Filipinas. De acordo com relatos da mídia local, a fábrica australiana produzia principalmente réplicas de espingardas .22, enquanto a fábrica descoberta em Pampanga, Filipinas, era suspeita de fabricação ilegal de armas-caneta de calibre .22.

As armas de fogo são ilícitas quando fabricadas sem licenças de produção ou quando a fabricação excede, sem a devida autorização, a quantidade para a qual se possui licença. O mesmo se aplica às armas de fogo produzidas sem identificação ou, em casos raros, com as mesmas marcas de identificação que facilitam o rastreamento.

Ao contrário da produção artesanal e da cópia de projetos de armas, uma terceira forma de fabricação ilícita realiza-se por meios rudimentares de produção. Os criminosos costumam produzir essas armas de fogo quando não conseguem produzi-las por outros métodos. Assim, usam componentes não projetados originalmente como parte de uma arma de fogo, mas que são adaptados para essa finalidade. 

Com o advento da impressão 3D, foram impressas armas ilícitas bastante diferentes daquelas encontradas no mercado legal (Daly e Mann, 2018). Essas armas são projetadas para disparar uma ou duas balas à queima-roupa, seja para autodefesa ou para atividades criminosas, onde não é necessário muito poder de fogo. Mais recentemente, a polícia de Queensland, Austrália, invadiu uma 'fábrica de armas ' de impressão em 3D. Foram apreendidas quatro metralhadoras "estilo Uzi", três silenciadores e duas pistolas (Crockford, 2016).

Por último, há os casos de cópias ilícitas produzidas a partir de desenhos existentes. Durante a Guerra dos Balcãs, as oficinas de máquinas na Croácia fabricaram uma variante de pistola Uzi para atender à demanda doméstica. Em 2003, um carregamento com 30 dessas armas escondidas em um caminhão de carga foi interceptado no porto de Dover (Bazargan, 2003).

 

Roubo e desvio de armas de fogo

'Desvio ' é o termo usado para o movimento – físico, administrativo ou de qualquer outro tipo – de uma arma de fogo do domínio legal para o ilícito (MOSAIC, 2014). O desvio pode ocorrer em qualquer fase do ciclo de vida de uma arma de fogo, apresentando vários desafios para o controle de armas.

Um fenômeno documentado é o “desvio de estoque”, seja civil ou nacional (isto é, do governo). Outro é o desvio de armas de fogo durante o transporte de um local para outro, por exemplo, quando a documentação forjada facilita a transferência de armas para um destino não autorizado pelo governo exportador. Também é amplamente reconhecido que o roubo de armas armazenadas em um depósito pode culminar em desvio. Corretores ou comerciantes ilícitos articulam os elementos necessários para facilitar o tráfico e o desvio transfronteiriço de armas de fogo. As armas em situação legal podem perder esse status se o proprietário perder sua licença ou não mantiver seus registros:

A Figura 4.2 abaixo ilustra os diversos tipos de estoques e seus tipos associados de desvio)

 

Desvios, furtos ou perdas de fabricantes legais

As armas ilícitas podem ter origem em fábricas legítimas. Elas se tornam ilícitas ao serem desviadas ou roubadas de forma fraudulenta das lojas, instalações de armazenamento do Estado, instalações militares ou residências particulares. Na instância mais básica, um funcionário pode, por exemplo, roubar uma pistola que não foi registrada e vendê-la no mercado negro. O roubo de componentes de armas e munição também é um problema.

Disseminação de estoques militares

O fim da Guerra Fria resultou em uma diminuição significativa das forças militares da OTAN e do antigo Pacto de Varsóvia, fazendo com que grandes quantidades de armas e munições excedentes fossem oferecidas no mercado internacional a preços de barganha. Grande parte desse armamento acabou em áreas de conflito (Greene, 1999; Carr, 2008). Muitas armas da extinta União Soviética encontraram compradores nas novas zonas de conflito ao redor do mundo, à medida que Estados e empresários criminosos se deram conta de que os antigos estoques de armas militares estavam entre seus produtos mais vendáveis. Como Chivers (2010) ironicamente sugeriu, o triunfo global do neoliberalismo foi transformar em commodities as melhores armas do comunismo. Como Holtom (2007) comentou, ”na era pós-soviética, as considerações comerciais substituíram os fatores ideológicos, com considerável descentralização e falta de controle do Estado, caracterizando as políticas de exportação de APAL no início dos anos 90".

Escoamento ou pilhagem de estoques existentes

Roubo e desvios de locais de produção, estoques, instalações militares ou fontes policiais contribuem para a disseminação ilegal de armas de fogo. A insegurança das instalações onde as armas são armazenadas é um grande problema global. Muitos países carecem da capacidade de proteger armas pertencentes às forças de segurança militares e locais. Em tempos de instabilidade militar ou política, os estoques mantidos pelo Estado ficam particularmente em risco de ataques e saques por grupos rebeldes (por exemplo,, Líbia) (CAR, 2016). Globalmente, há um grande esforço para proteger esses estoques e reduzir a aquisição ilícita de armas de fogo obtida dessa forma.

Perda de armas usadas, aquisição de campos de batalha e souvenirs de militares

Uma preocupação com os soldados que regressam com itens do campo de batalha surgiu no Reino Unido após a primeira e a segunda Guerra do Golfo (Owen, 2013), embora esta não tenha sido de modo algum a primeira ou única ocorrência desse problema. Vencedores e sobreviventes de embates militares frequentemente adquirem armas. Berman et al. (2017) também encontraram vários casos de soldados da paz da ONU supostamente vendendo ou tendo suas armas retiradas à força por grupos rebeldes após emboscadas ou confrontos. A pesquisa foi relatada nos seguintes termos: “As forças de paz apoiadas pela ONU perderam uma quantidade de armas e munições na África subsaariana nas últimas duas décadas que seriam suficientes para armar um exército, de acordo com um estudo do Small Arms Survey” (Berman et al., 2017; Reinl , 2017).

Roubadas de ou perdidas por civis

A propriedade civil representa o maior tipo de posse de armas de fogo do mundo. Existem muitas oportunidades para terroristas e criminosos adquirirem armas ilegalmente de civis (incluindo criminosos, membros de gangues e empresas de segurança privada). Uma das formas dessas armas se extraviarem é por meio do roubo de casas e de veículos em que essas armas podem estar contidas. Alguns proprietários também perdem suas armas e outros as vendem ilegalmente no mercado negro. Os regulamentos de cada país referentes à posse de armas por civis variam significativamente e criam oportunidades para a aquisição de armas de fogo em um país com leis brandas e o tráfico ilícito para países com leis mais rigorosas, conforme mostrado anteriormente em relação aos Estados Unidos, México e Canadá.

Armas de fogo de empresas de segurança privada

As armas de fogo mantidas por empresas de segurança privada, onde essas empresas existem e operam legalmente, também se enquadram na categoria de armas portadas por civis. Os roubos e perdas de armas de fogo de empresas de segurança podem ser maiores do que em residências particulares. Esses casos também são motivo de grande preocupação, principalmente quando os enquadramentos legais nacionais são inadequados para controlar apropriadamente as armas de fogo e as atividades a elas associadas.

Roubo ou fraude de comerciantes legais ou fraude por comerciantes legais

Os comerciantes de armas de fogo podem produzir documentação de licenciamento (“clonagem”) e serem pouco criteriosos em relação aos requisitos para a elegibilidade para compra de armas de fogo. A combinação do conhecimento que possuem sobre armas de fogo e das redes de contatos também lhes proporciona oportunidades para adquirir e vender armas, munições e componentes não registrados.

Falsas exportações

Módulo 3, sobre o Mercado Legal de Armas de Fogo, descreve como as exportações de armas de fogo devem ser acompanhadas de um documento declarando o conteúdo e o destino da remessa. O mundo está repleto de casos em que as transferências de armas são demarcadas erroneamente como outras mercadorias, como “peças de máquinas”, e vão para um país diferente daquele documentado. Uma vez que o carregamento chega no país destinatário, a disseminação das armas é realizada pelos responsáveis por burlarem a lei, geralmente grupos ligados ao terrorismo ou à violência armada e até mesmo o próprio Estado. Idealmente, todas as remessas legais devem corresponder a um Certificado de Usuário Final (EUC) assinado pelos Estados exportadores e importadores que especifica quem usará as armas e garante que as armas de fogo não devem ser reexportadas sem a permissão do Estado exportador. Mas isso nem sempre acontece. Muitas transferências tornam-se ilícitas na reexportação de armas para aqueles que as utilizam indevidamente sem a permissão do Estado exportador (Bromley e Griffiths, 2010). As várias formas pelas quais os Certificados de Usuário Final são alterados ou produzidos facilitam a reexportação ou o "desvio" de armas, levando as armas de fogo à ilegalidade.

 

Conversão, reativação e reciclagem de armas de fogo

 

Armas de fogo convertidas

As leis nacionais sobre armas de fogo normalmente restringem os tipos de armas que os civis podem possuir legalmente, mas não eliminam, necessariamente, a demanda por armas de tipo restrito. Consequentemente, as proibições de certas armas de fogo levaram algumas partes a conceber novos meios de adquirir essas armas ou similares. Um método comum envolve alterar mecanicamente uma arma de fogo acessível para funcionar de maneira semelhante a uma arma de fogo restrita. Esse processo é conhecido como conversão de armas de fogo e tem sido observado em todo o mundo (Small Arms Survey, 2015). De acordo com a pesquisa da Small Arms Survey (2015: 1), "as armas de tiro de festim são os modelos mais comumente convertidos em todo o mundo, mas muitos outros tipos de armas de fogo também são de frequente conversão".

A conversão é possível para muitos tipos de réplicas de armas de fogo, mas alguns modelos são mais atraentes por causa de seu design, materiais utilizados em sua construção e pela facilidade com que podem ser convertidos. A acessibilidade às armas de fogo convencionais, as restrições legais, o custo das pistolas e o fato de que as réplicas podem não ser rastreáveis, especialmente atraente para os criminosos, têm impacto na demanda por armas de fogo convertidas (Squires, 2014). A conversão de pistolas não-letais em armas letais é muito popular entre criminosos na Europa (ver o vídeo on-line).

Mundialmente, as autoridades competentes para a aplicação da lei frequentemente confiscam um grande número de réplicas de armas de fogo e geralmente expressam preocupação com sua possível conversão. A conversão de armas de fogo é uma prática global e, em alguns lugares, assume as dimensões de um processo de fabricação em pequena escala. Enquanto os países europeus relatam com mais frequência o problema, as armas convertidas aparecem em muitos países, inclusive mais recentemente em vários países africanos. A Casa de Compensação de Controle de Armas Pequenas e Armas Leves do Sudeste e Leste Europeu (SEESAC, na sigla em inglês), um projeto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento nos Balcãs, também relatou esse problema em seu artigo Armas Convertíveis nos Balcãs Ocidentais (SEESAC, 2009). A conversão de armas não letais em armas de fogo funcionais é, estritamente falando, uma forma de fabricação ilícita e sujeita a sanções criminais nos termos do Protocolo das Nações Unidas sobre armas de fogo. O presente Protocolo considera ilícitas todas as armas de fogo fabricadas sem uma autorização ou licença válida emitida por uma autoridade competente e/ou sem a marcação exigida (Artigo 3 (d) e Artigo 5 do Protocolo de Armas de Fogo).

Armas de fogo reativadas

Considerações semelhantes aplicam-se à reativação de armas. Existe um mercado global de armas de fogo “icônicas”, sejam réplicas falsas de armas originais ou armas desativadas, como aquelas, por exemplo, empregadas em produções teatrais e cinematográficas. A lei exige a desativação de certos tipos de armas como essas.

Para ser considerada desativada, o Protocolo das Nações Unidas sobre Armas de Fogo exige que "todas as partes essenciais de uma arma de fogo desativada sejam tornadas permanentemente inoperantes e incapazes de serem removidas, substituídas ou modificadas de uma maneira que permita que a arma de fogo seja reativada de qualquer forma" (Artigo 9, Protocolo de Armas de Fogo). No entanto, na prática, os países têm diferentes critérios de desativação, o que pode permitir que um especialista em armas de fogo reverta o processo de desativação. Dependendo da extensão do processo de desativação a que essas armas de fogo foram submetidas (países diferentes têm padrões de desativação mais ou menos rigorosos, mas alguns países podem ter especificações de desativação mais antigas ou mais recentes), pode ser possível que pessoas qualificadas tragam essas armas de volta ao pleno funcionamento. 

O problema das armas reativadas ilicitamente tornou-se especialmente preocupante na Europa. Nos últimos anos, ataques terroristas de alto perfil foram cometidos usando armas reativadas. Uma razão para existir essa forma específica de tráfico ilícito na Europa parece ser o fato de que, em muitos países europeus, o acesso legal a outras armas de fogo é mais difícil. Os criminosos recorrem a essa modalidade porque lhes permite operar fora do radar, graças a maiores disparidades entre os critérios nacionais de desativação entre os Estados-Membros da União Europeia. A título de exemplo, cientistas forenses examinaram um estoque significativo de armas reativadas apreendidas pela polícia belga no final dos anos 90 (Migeot e De Kinder, 1999), enquanto várias oficinas para reativação em massa de armas de fogo foram descobertas no Reino Unido. A polícia também descobriu uma cadeia de suprimentos de metralhadoras Mac-10 reativadas, que armavam criminosos de Dublin, Manchester, Glasgow e Londres (Walsh, 1999). Localizada em uma oficina alugada em Hove, East Sussex, uma operação policial encontrou 40 Mac-10s desativadas e as ferramentas e componentes para restaurá-las ao pleno funcionamento, vinculando-as posteriormente a numerosas cenas de crimes envolvendo armas em todo o país. Na sua forma desativada, as armas custariam cerca de 100 libras cada uma, mas poderiam custar dez vezes mais quando reativadas.

Em 2016, surgiram evidências de que a polícia em Kent apreendeu uma carga de 22 fuzis de assalto AK reativados e nove pistolas-metralhadoras Skorpion, a maior apreensão de armas de fogo ilegais interceptadas no Reino Unido. A mesma empresa eslovaca forneceu as armas usadas pelos terroristas no atentado de 'Charlie Hebdo' em Paris, em janeiro de 2015. A empresa eslovaca vendeu as chamadas 'armas de expansão acústica’ desativadas como souvenirs, embora o processo de desativação pudesse ser facilmente revertido por meio da remoção dos pinos inseridos nos canos das armas (Laville, 2016).

Armas de fogo antigas

As armas de fogo antigas podem ser reprojetadas para disparar munição atual e/ou munições feitas sob medida. Cerrar os canos de rifles e espingardas que foram roubados os tornam mais fáceis de se transportar e ocultar pelos delinquentes.

Reciclagem e revenda de armas descartadas ou excedentes

A coleta e destruição de armas de fogo excedentes faz parte do esforço global para reduzir os efeitos nocivos do fornecimento ilícito e indiscriminado de armas de fogo desde meados da década de 90. Essas armas se tornam ilícitas de várias maneiras. Algumas delas levam muito tempo para serem destruídas e são às vezes armazenadas em estoques que criminosos e terroristas podem roubar. Alguns países podem ter restrições muito frouxas à aquisição de APAL e armas de fogo excedentes, enquanto outros podem revender armas excedentes ou acumuladas como forma de arrecadar dinheiro. Apesar de os Estados estarem prestando mais atenção à questão das armas excedentes, muitas armas oriundas de conflitos anteriores seguem em circulação durante muito tempo, por exemplo, por meio da manutenção, reparo e reciclagem por armeiros ilegais ou pela venda de suas peças avulsas na Internet.

 
Seguinte:  Consequências dos mercados ilícitos: produção, prolongamento e exacerbação dos conflitos e agravamento dos níveis de criminalidade e violência
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