12º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal

Antonio Maria Costa

"Não há segurança ou desenvolvimento sem justiça"

Este Congresso de Prevenção ao Crime conseguirá vencer seus desafios?

Vossas Excelências,
Senhoras e senhores,

Até agora, este Congresso de prevenção ao Crime colocou o sistema global de justiça criminal sob julgamento - se me permitem a metáfora. Eu não ficaria surpreso se o veredicto fosse severo. Em muitas partes do mundo:

•    Cidades, e mesmo Estados, não são capazes de oferecer segurança pública. A má distribuição de renda, nos países e entre as nações, se transformou em má distribuição de justiça e de segurança: condomínios fechados e seguranças privados protegem os ricos, enquanto as áreas pobres são dominadas por grupos criminosos;

•    Policiais enfrentam criminosos bem equipados e que atuam em rede. Na maior parte das vezes os salários são baixos e a tentação de aceitar um suborno é alta;

•    Promotores não têm capacitação nem equipamentos para coletar evidências, enquanto os criminosos contratam os melhores advogados para livrá-los da cadeia;

•    Juízes são intimidados, subornados e até assassinados. Em vários países eles têm tanto trabalho que acarreta em demora na justiça - o que significa a ausência de justiça;

•    As prisões, superlotadas com pessoas detidas sem julgamento ou por crimes de menor potencial ofensivo, se tornam em universidades do crime, além de locais de disseminação de doenças;

•    A lavagem de dinheiro corrompe setores inteiros da economia, gerando um sentimento nas pessoas de que a lei só se aplica para alguns.

Se o sistema de justiça criminal estivesse mesmo sob julgamento, o caso seria arquivado por falta de provas. Ao contrário de outras áreas nos quais as Nações Unidas são a melhor fonte global de informação, não temos regras, dados nem um marco lógico para reportar as tendências do crime, entender suas causas e medir sua dimensão. Impossibilitados de medir os progressos, não podemos afirmar se o trabalho das policiais está sendo bem sucedido ou não.

Tudo o que podemos ver são as consequências, os custos materiais e o sofrimento causados pelo crime. Permitam-me focar especialmente no crime organizado, porque é ele que tem chamado a atenção.

Uma ameaça à segurança

No último quarto de século, especialmente depois da Guerra Fria, uma abertura sem precedentes no comércio, nas finanças, nas viagens e nas comunicações tem impulsionado o crescimento econômico e os padrões de vida das pessoas. Assim, o fato de que a governança global não tenha conseguido acompanhar a globalização econômica permitiu que máfias internacionais prosperassem. O crime organizado se tornou um negócio com dimensões macroeconômicas comparado aos produtos nacionais de muitos países e aos faturamentos das maiores corporações mundiais. Por seu tamanho e por seus meios, o crime organizado também se tornou uma ameaça à segurança:

•    Carteis de drogas estão espalhando a violência na região meso-americana, na Ásia Ocidental e na África Ocidental;
•    Conluios entre grupos insurgentes e criminosos (na África Central, na região dos Andes e no Sudeste da Ásia) alimentam o terrorismo e roubam os recursos naturais;
•    O contrabando de migrantes e a escravidão moderna se espalham pela Europa e pela região de Maghreb, assim como no Sudeste da Ásia e na América Latina;
•    O tráfico de armas proveniente dos países ricos e exportadores da América do Norte, da Europa e da Ásia estão empoderando os criminosos e alimentando conflitos;
•    Piratas oriundos de alguns dos países pobres do mundo (no Nordeste da África) capturam embarcações dos países mais ricos e enfrentam as marinhas mais poderosas;
•    O contrabando de produtos falsificados mina o comércio lícito e a propriedade intelectual, enquanto medicamentos piratas põem em risco a vida dos mais necessitados;
•    Recursos naturais - petróleo, minerais preciosos, madeira e espécies raras - enriquecem os criminosos e empobrecem o planeta;
•    O cibercrime rouba a identidade das pessoas para cometer fraudes e ameaçam as infraestruturas civis e, por consequência, a segurança das nações;
•    A lavagem de dinheiro se tornou compensadora ao ponto de, em tempos de crise financeira, o mundo empresarial competir em liquidez nas mãos do crime organizado.

A ameaça do crime organizado é tão séria que o Conselho de Segurança da ONU, em várias ocasiões, considerou suas implicações em diversas áreas (Ásia Ocidental, América Central, África Ocidental e Oriental), e em relação a vários temas (tráfico de armas, de drogas, de pessoas e de recursos naturais). O UNODC, muitas vezes chamado a levar evidências no passado, está honrado em receber a missão de reportar periodicamente ao Conselho no futuro.

Uma ameaça ao desenvolvimento

O crime organizado também representa uma ameaça ao bem estar das nações. O crime cria instabilidade que afasta investimentos - um círculo vicioso que alimenta conflitos, a pobreza em massa e os danos ambientais. O crime se tornou um impedimento à conquista dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Eu costumava achar estranho que o combate ao crime não estava incluído entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Mas agora vejo com satisfação que a busca pela justiça vai além de um objetivo do milênio adicional: ele é a base para todos esses objetivos. Não pode haver desenvolvimento sem justiça - e vice-versa.

Para ilustrar tudo isso, pegue um mapa dos países assolados pelo crime e pela corrupção e o sobreponha a um mapa dos conflitos. Então, justaponha uma tabela de renda per capita. Você verá que crime, violência e subdesenvolvimento se sobrepõem. E esses países, claro, coincidem com as operações das Forças de Paz da ONU. Como esses países poderão atingir as metas de desenvolvimento? Há uma correlação mútua entre um Estado de Direito fraco e um desempenho econômico fraco. E quando falo de correlação, como um cientista social, e com uma inclinação mais técnica, alguns analistas mais convincentes poderiam chamar de causalidade. Em outras palavras, o crime está sim causando pobreza.   

Nós não podemos apenas jogar dinheiro e capacetes azuis nas situações de crime: é a busca pela justiça que irá criar condições para a segurança e o desenvolvimento. Por isso, eu convido esse Congresso a contribuir para a Cúpula dos Objetivos do Milênio, convocado pela Secretaria-Geral para setembro e a facilitar a implementação dos objetivos no terceiro e último período (2011-2015).

Como o Congresso de Prevenção ao Crime pode ajudar?

Até agora, falei que o crime organizado é uma ameaça à segurança e ao desenvolvimento, Eu não sou o único a dizer isso: em muitas pesquisas, o crime está emergindo como um fantasma ao qual as pessoas temem tanto ou mais do que o terrorismo, o desemprego e as mudanças climáticas. Com boa parte da humanidade esperando uma justiça mais rápida e mais honesta, como este Congresso pode ajudar? Vamos discutir eternamente a declaração ou vamos agir para facilitar a realização da justiça? O mundo está esperando sua orientação: não decepcione a "nós, o povo...".

•    Primeiramente e mais importante, trata-se de uma questão de direitos humanos. Na Cúpula Mundial de 2004, os Estados-Membros resolveram que a proteção dos direitos humanos deveria ser integrada às políticas nacionais. Em 2008, o Secretário-Geral solicitou que todas as instituições das Nações Unidas fizessem o mesmo. Apesar de ter havido progressos em várias áreas, políticas e práticas de justiça criminal não estão entre elas. Como seres humanos, assim como membros da comunidade de nações civilizadas, temos uma responsabilidade compartilhada de colocar direitos humanos no coração do sistema de justiça: independentemente do crime, pessoas investigadas ou atrás das grades não devem perder sua humanidade.   

•    O alcance de direitos humanos enfrenta o desafio de trazer a administração da justiça para nossos tempos. Em Salvador, um consenso deve emergir sobre o imperativo de rever e atualizar sistematicamente todos os padrões e normas sobre justiça criminal. Eles têm sido uma forma de capital intelectual criados durante o meio século de deliberações do Congresso. Como todas as formas de investimento, retornos menores (ou seja, obsolescência) são inevitáveis aos atuais padrões e normas.

•    A conferência de Doha dos Estados Partes da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) concordaram sobre a criação de um mecanismo para rever a sua implementação. Espera-se que este congresso consiga colocar esse mecanismo em prática de maneira rápida, efetiva e universal. Nesse sentido, na Sessão de 2015 seremos capazes de avaliar os progressos no combate à corrupção, identificar as áreas de melhoria e ajustar políticas domésticas com base em evidências. Nada disso é possível nesse momento.

•    Na mesma direção, seria decepcionante se este Congresso terminasse sem um chamado retumbante para um acordo na próxima Conferência dos Estados Partes (CoP em Viena), sobre um mecanismo para rever a implementação da Convenção (de Palermo) contra o Crime Organizado (UNTOC). Vocês podem perceber minha frustração. Por um lado, os delegados reunidos aqui manifestaram de maneira unânime a preocupação sobre o poder econômico e de fogo do crime organizado. Por outro lado, Conferências das Partes anteriores sobre a Convenção contra o Crime Organizado falharam em chegar a um acordo sobre mecanismos que ajudassem a medir progressos e identificar necessidades de assistência.

•    E então devemos perguntar a nós mesmos: estamos equipados para enfrentar novos crimes (no espaço cibernético, contra o meio ambiente e falsificação) bem como crimes que ressurgem (pirataria e contrabando)?  Ao reformar os instrumentos existentes (preocupados com ameaças físicas), não evitemos criar novos instrumentos para lidar com crimes invisíveis: pela internet, cadeias de fornecimento e o sistema financeiro. Esses são crimes difíceis de capturar: eles viajam como bytes, disfarçados como transações lícitas, originados em jurisdições de difícil definição - ainda que, sua complexidade não deva ser impedimento: pois eles são os mais danosos.

Governos podem fazer muito - e ainda será pouco

Antes de terminar, Vossas Excelências, permitam-me falar sobre algo que me traz angústia: o importante papel que a sociedade com um todo representa na promoção da justiça.

Começo partindo de uma observação que deve ter ocorrido a vocês também: a incongruência entre (a silenciosa) maioria da sociedade que é corroída pelo crime e a (estrondosa) minoria que é atraída por ele - por lucro ou diversão.

Olhem ao redor, por favor, e encontrem os colaboradores voluntários do crime organizado. Jornalistas irresponsáveis (que esqueceram de seus colegas mortos em função de seu trabalho investigativo) transformam gângsteres em estrelas e glamorizam a violência. Jornalistas financeiros listam grandes criminosos entre os ricos e famosos do mundo. Banqueiros se apressam em investir proventos sanguinários enquanto um batalhão de advogados, contadores, consultores financeiros e corretores imobiliários de colarinho branco também recebem fatias do bolo.

E há também a indústria do entretenimento: vários gêneros cinematográficos, de literatura, música e vídeo games glamorizam os gângsteres, os bandidos e os matadores de aluguel. Séries de TV populares celebram os mafiosos, seus carros, armas e suas mulheres. Músicos transformam narcotraficantes em heróis folclóricos e fazem canções sobre "ficar doidão". Modelos são fotografadas cheirando cocaína mesmo que a droga tenha sido traficada através do intestino de mulas.

São todas essas pessoas cegas? Estúpidas? Mercenárias? Eu não sei, talvez tudo isso e até mais. Com certeza elas estão se esquecendo dos agricultores miseráveis que cultivam terras áridas com suas próprias mãos para satisfazer o consumo de drogas do outro lado do mundo; das meninas vendidas pelos seus próprios pais a bordéis; crianças submetidas a trabalho forçado para produzir roupas caras; jovens desempregados que se tornam soldados de máfias internacionais, imigrantes ilegais atraídos para fábricas clandestinas; ou dos milhares de infelizes, pessoas comuns que morrem no fogo cruzado da violência dos cartéis.

Aonde quero chegar? A lei não prevalecerá a menos que empreendamos maciços esforços para engajar pessoas comuns e fazer a sociedade desejar promover mais amplamente a cultura de justiça - como igualmente está acontecendo em lutas titânicas contra as mudanças climáticas, pandemias e a pobreza. Eu saúdo a vibrante participação da sociedade civil nesse Congresso.

Não há como haver segurança ou desenvolvimento sem haver justiça. A prevenção ao crime e a justiça criminal não tem um fim em si mesmo: elas podem gerar sociedades mais ricas e seguras. Fiat justitia et perat mundias (faça-se justiça, ainda que o mundo acabe), diriam meus ancestrais latinos. Eu convido vocês a inverter isso: faça-se justiça para salvar o mundo. Obrigado pela atenção.

18-04-2010