Políticas sobre drogas na América Latina
Bo Mathiasen
A recente decisão da Corte Suprema da Argentina de considerar inconstitucional um artigo da lei 23.737, que prevê pena de prisão para usuários de drogas ilícitas pegos com pequenas quantidades para uso pessoal, voltou a pautar na América Latina a discussão sobre as políticas públicas sobre drogas. Parece haver no continente um movimento em direção a políticas que diferenciam os usuários dos traficantes e que conciliam estratégias de repressão ao crime organizado com ações de prevenção, tratamento e atenção para usuários.
Com essa decisão, a Argentina se junta a outros países que, de diferentes maneiras, estão caminhando em direção a fazer com que usuários de drogas não sejam necessariamente levados à prisão. Vale ressaltar, no entanto, que isso não muda o fato de que o consumo de drogas ilegais continua sendo um ato ilícito, sujeito a sanção por parte da sociedade. É preciso deixar claro que não se trata de um passo em direção à legalização das drogas, já que as convenções internacionais continuam considerando crime plantar, extrair, manufaturar, armazenar, transportar, distribuir, comprar e vender drogas ilícitas.
Entretanto, observa-se uma tendência de que os limitados recursos do sistema de justiça criminal e de segurança pública sejam direcionados não aos usuários de drogas, mas aos financiadores do tráfico e ao crime organizado. Nesse sentido, seria importante investir em uma repressão qualificada, direcionada por ações de inteligência policial, para efetivamente reduzir a oferta de drogas. Isso requer um maior foco nos grupos transnacionais, sustentadores dos pequenos traficantes que vendem drogas no varejo. Também requer que o crime organizado e a corrupção associada a ele não sejam enfrentados de maneira isolada, mas por meio da cooperação internacional entre as autoridades competentes.
As convenções das Nações Unidas sobre drogas são claras em listar as substâncias consideradas ilegais pelos países-membros, mas não definem de que forma os países devem diferenciar usuários de traficantes, pois as legislações nacionais são assuntos de decisão soberana. De qualquer forma, embora essa distinção não seja fácil, é importante que prevaleça o bom senso, principalmente por parte dos juízes, no sentido de se estabelecer uma proporcionalidadeem relação às penas aplicadas em cada caso, considerando aspectos como a reincidência, por exemplo.
Em termos de redução de consumo, é preciso fortalecer a promoção do acesso universal às ações de prevenção e tratamento para usuários, sempre dentro de uma perspectiva de direitos humanos e de cidadania. Deslocar o foco da justiça criminal para a saúde pública requer o fortalecimento das ações integradas de informação e de redes de atendimento. Para isso, é fundamental que os diferentes setores do governo e da sociedade civil que trabalham nas políticas de drogas mantenham um diálogo e uma articulação constantes.
Ainda que sejam estimuladas nos países mudanças de legislação no sentido de se aplicar penas alternativas, há consenso entre os Estados-membros sobre a posição de manter as drogas ilegais. Uma eventual legalização implicaria o risco de uma possível epidemia de abuso de drogas, exigindo um aparato de proteção de proporções que a maior parte dos países não teria condições de oferecer. Afinal, as drogas não são prejudicais porque são ilegais, são ilegais justamente porque são prejudiciais.
É importante compreender que não se trata de contrapor uma postura "liberal" a favor da legalização a uma posição "conservadora" de controle, mas de conciliar uma abordagem de atenção aos usuários problemáticos e de prevenção para os usuários ocasionais e para a população em geral, com o combate focado no crime organizado. A aparente contradição entre legalização ou não-legalização tende a tirar a discussão do foco realmente fundamental e que, em última análise, revela muito mais convergências do que divergências: a busca por uma abordagem equilibrada entre as ações de prevenção, de tratamento e de repressão ao crime organizado. Se as convergências forem mais observadas do que as divergências, o debate em relação às políticas sobre drogas poderá se converter em um processo que efetivamente resulte em benefícios concretos para todos.
Bo Mathiasen, dinamarquês, é o representante do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) para o Brasil e o Cone Sul. É mestre em Ciência Política e Economia pela Universidade de Copenhague e especialista em Desenvolvimento Econômico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
27-08-2009