Discurso do UNODC em segunda audiência do Senado sobre regulamentação do uso da cannabis no Brasil
Coronel Jorge da Silva, Cristovam Buarque e Nivio Nascimento |
Brasília, 18 de Agosto de 2014 - Leia a seguir a íntegra do discurso do Oficial de Programa de Estado de Direito do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), Nivio Nascimento, durante a segunda audiência pública sobre regulamentação do uso da cannabis no Brasil, realizada no dia 11 de agosto pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado:
Bom dia!
Gostaria de agradecer à senhora presidente pelo convite feito ao Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime - UNODC - para participar do debate sobre a Sugestão n. 8/2014, que trata da regulamentação do uso recreativo, medicinal ou industrial da maconha. Seguindo a apresentação do representante do UNODC no Brasil, o sr. Rafael Franzini, tenho a honra de estar aqui para discutir as implicações de uma possível regulamentação para o campo da Segurança Pública, questão que tem preocupado amplos setores da sociedade brasileira.
Nesse sentido, não irei abordar temas já tratados na audiência anterior. Gostaria de deixar claro que estou não aqui para defender ou para atacar a sugestão de projeto. Minha intenção é contribuir com alguns elementos da perspectiva internacional e lançar algumas questões importantes para o debate. As respostas não são fáceis e dependem de um amplo debate entre diversos setores da sociedade.
Com relação aos acordos e tratados internacionais, é importante ressaltar que existe a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), que é um órgão de fiscalização independente para a implementação das Convenções Internacionais das Nações Unidas de controle de drogas. O UNODC é o órgão das Nações Unidas encarregado de apoiar os países na implementação das três convenções da ONU sobre drogas, além das convenções contra o crime organizado transnacional e contra a corrupção. Em função desses instrumentos internacionais, o mandato do UNODC é extremamente amplo e intersetorial, indo desde questões relativas à saúde até casos complexos de corrupção e crime organizado. Esse mandato é exercido por meio de uma abordagem ampla dos problemas sociais associados às drogas e à criminalidade. É um pouco dessa perspectiva que pretendo trazer aqui.
Em primeiro lugar, não é possível afirmar que uma eventual regulação da Cannabis poderia reduzir ou mesmo acabar com o crime organizado. Não existem evidências confiáveis sobre os possíveis impactos a longo prazo. Isso porque somente alguns estados americanos e o Uruguai estão em um momento inicial de regulação da produção, da venda e do consumo e os impactos dessas iniciativas só poderão ser estimados muito tempo depois. É fundamental observar o que acontece em outros países e estados que estão discutindo e/ou implementando a regulação no que tange aos seguintes aspectos da cannabis: a) evolução do mercado; b) impactos no mercado ilícito de Cannabis; e c) consequências no mercado ilícito de outras drogas. E tudo isso deve ser feito a partir de um monitoramento que permita perceber mudanças e continuidades no tempo, a partir de séries históricas. Esse processo deve ser contínuo e as respostas não são definitivas. Os ajustes devem ser feitos sempre em função de evidências científicas confiáveis, que devem ser produzidas por diversos campos do conhecimento. Além disso, é importante também considerar a relação entre custo e benefício que a regulação da produção e venda traria para um país de dimensões continentais. Não é desafio simples criar toda uma estrutura para regular a produção, venda e consumo num estado federativo como o Brasil.
A produção, o tráfico e consumo de Cannabis se inserem em um mercado de ilícitos transnacionais, que envolve articulação e fluxos financeiros entre organizações criminosas baseadas em diferentes países, contando quase sempre com a corrupção ou conivência de agentes públicos. Nesse contexto, é impossível demarcar as fronteiras entre o tráfico de maconha, armas, pasta base, cocaína, contrabando, entre outras atividades criminais. São comuns os exemplos de quadrilhas que praticam mais de uma modalidade de ação criminosa. O desafio é entender as relações entre essas diferentes práticas de crime organizado dentro de uma lógica de mercado. E, nesse sentido, uma eventual legalização da Cannabis teria efeitos imprevisíveis nas dinâmicas do crime, além de fazer com que o foco de atuação das quadrilhas migrasse para outras atividades ilícitas. O tão citado exemplo da lei seca norte-americana também demonstra como grupos criminosos profissionais são capazes de se adaptar aos novos tempos de uma maneira muito rápida e eficaz. A regulação do álcool pode ter acabado com a produção, venda e consumo ilícito, mas não foi capaz de conter a atuação da máfia e baixar o consumo. Esse é um dos motivos pelos quais a discussão não deve ser guiada pelo objetivo de acabar ou reduzir o crime organizado.
A forma mais eficaz de se enfrentar o crime organizado e os tráficos ilícitos tem sido justamente focar os esforços nos ganhos econômicos dos grupos organizados. A busca do lucro é a base comum da criminalidade organizada e em algum momento o dinheiro resultante de atividades ilícitas tem que entrar no sistema financeiro. E essa é a grande oportunidade para reduzir a capacidade desses grupos de corromper agentes públicos e oprimir populações vivendo em territórios vulneráveis, além causar sérios danos à saúde da população. Apesar dos esforços, a comunidade internacional ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de enfrentamento à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos resultantes do crime.
Esse movimento é fundamental não apenas para conter o tráfico de drogas mas também outros tipos de deliquência organizada. Não se trata de um problema específico desse ou daquele país, mas uma questão de responsabilidade compartilhada. Independentemente da legalização de substâncias ilícitas é importante levar em consideração que grupos criminosos profissionais sempre representam uma ameaça ao Estado de Direito e ao desenvolvimento. Com a recente estabilidade e crescimento econômico, o Brasil se tornou um mercado cada vez mais atraente para o tráfico de drogas e é importante pensar em estratégias integradas. Estratégias que considerem o tráfico de drogas ilícitas em conjunto e a sua relação com outros tipos de delinquência organizada. Na mesma medida, as respostas para o problema tem que ser integradas e intersetoriais, pois os problemas colocados pelas drogas requerem o envolvimento de várias áreas do governo que incluem políticas de saúde, educação, assistência social e, naturalmente, segurança pública.
Buscando o lucro fácil e rápido, grupos organizados recrutam mão de obra barata para o tráfico de drogas em um mercado de trabalho ilícito que tem como alvo principal pessoas em condição de vulnerabilidade. Por esse ponto de vista, tanto faz se estamos falando de maconha, cocaína ou crack. As principais vítimas desse mercado são pessoas que buscam trabalho e dinheiro, ou que estão querendo consumir alguma substância ilícita. Vários estudos já demonstraram a imensa dificuldade existente para enfrentar a "criminalidade dos poderosos", seja ela relativa à produção, ao consumo ou ao tráfico de substâncias ilícitas. Ocorre que na maior parte dos países a atuação dos órgãos de segurança e justiça tem se concentrado justamente naquelas pessoas que estão em condições mais vulneráveis na cadeia que vai da produção ao consumo de drogas ilícitas. Estamos falando aqui de pessoas que passam por algum tipo de exclusão econômica e social. Pessoas que tem dificuldade em ter acesso à auxílio jurídico na sua relação com a justiça criminal. Pessoas que necessitam de atendimento no sistema de saúde.
Em quase toda parte os sistemas penitenciários encarceram usuários e pequenos traficantes em condições que não propiciam a reintegração social e diminuem a oferta e a demanda de drogas. Pelo contrário, o encarceramento em massa, acompanhado por sérias violações aos direitos humanos, facilitou o surgimento das "universidades do crime" e o fortalecimento de grupos criminosos com alta capacidade de organização. Em geral, as pessoas que estão presas são provenientes de contextos de ampla vulnerabilidade social e o sistema de justiça criminal apresenta baixa capacidade de lidar com aqueles que mais tem poder e influência no tráfico de drogas. As alternativas à justiça tradicional, como a justiça restaurativa e a terapêutica, entre outras alternativas à pena de prisão, devem estar no centro da pauta para a reversão da situação de segurança pública, uma vez que a exposição ao ambiente prisional tem facilitado o vínculo com organizações criminosas, ampliado o preconceito e o agravado as condições de saúde e de inserção social.
Embora o uso não medicinal de substâncias psicotrópicas seja proibido pelas Convenções de controle de drogas, a severidade da punição varia consideravelmente entre os países. Sendo matéria de interpretação e alinhamento ao ordenamento jurídico de cada país signatário, as convenções não dispõem sobre a forma de se penalizar usuários, produtores e traficantes. Mas é correto afirmar que a redução da oferta e da demanda deve estar em linha com os instrumentos internacionais de direitos humanos e se dar em conformidade com o princípio da proporcionalidade das penas. Em outras palavras, todos os países apresentam punições severas para o tráfico de grandes quantidades de drogas e crimes violentos relacionados às drogas. Por outro lado, há grande diversidade quanto à forma como se punem os crimes relacionados ao uso, ao porte e ao microtráfico de entorpecentes. Na mesma medida, variam as penas para crimes associados ao uso de drogas, como é o caso de pessoas com alto grau de dependência.
Nosso diretor executivo, o sr. Yury Fedotov, já afirmou a necessidade de se restabelecer a balança entre ações destinadas a diminuição da oferta e a redução da demanda por drogas. Durante muitos anos as políticas de drogas se centraram na redução da oferta por meio de ações de repressão ao uso, porte e tráfico de entorpecentes. Nesse processo, ficou em segundo plano a redução da demanda, que se traduz em ações destinadas à educação, tratamento, reabilitação e reintegração social de usuários e toxicodependentes. Abordagens voltadas à ações à saúde, educação, aconselhamento e reintegração tem se mostrado muito mais eficazes para a redução da demanda e já existe bastante evidência científica sobre isso. Se hoje não é possível chegar a um consenso sobre a regulação, descriminalização ou despenalização de algumas substâncias ilícitas, dentre elas a Cannabis, há fortes convergências na sociedade brasileira sobre a necessidade de tratamento e atenção a usuários e dependentes de drogas. E nesse ponto também há um longo caminho a percorrer.