Seminário: Drogas, Redução de Danos, Legislação e Intersetorialidade

Bo Mathiasen

Esta discussão em relação às drogas acontece no momento certo e no lugar certo. O hemisfério americano está passando por um período muito importante de reflexão e de mudança de paradigma relacionado à questão das drogas. Como vocês sabem, o debate sobre as políticas sobre drogas está na agenda de países como o México, a Argentina e também o Brasil. Mas antes de falar sobre isso, gostaria de compartilhar com vocês uma breve perspectiva histórica acerca desse tema.

Há exatamente cem anos, em Xangai, na China, pela primeira vez a comunidade internacional se reuniu para buscar soluções conjuntas para uma questão global: o abuso de drogas. Se em 1906, um quarto da população chinesa masculina adulta era dependente de ópio - a maior epidemia já enfrentada por um país em toda a história -, o esforço internacional foi capaz de conseguir um feito impressionante: reduzir em 70% a produção global de ópio em cem anos, período em que a população mundial quadruplicou. Só isso já deve ser considerado uma vitória.

Não há dúvidas de que a questão das drogas é um tema global. Com base no que preconizam as três convenções sobre o tema aprovadas pelos Estados Membros, e que tem adesão de praticamente todos os países, cabem às Nações Unidas apoiar os países a lidar com o tema. As convenções são claras em listar as substâncias que devem ser consideradas ilegais, mas não interferem na decisão de cada país em determinar quais encaminhamentos devem ser adotados nas diferentes situações relacionadas à disposição desses instrumentos, sempre respeitando a soberania nacional.

É preciso deixar claro que, no debate atual, não se está falando em legalização das drogas, pois nenhum país do mundo está propondo isso. A discussão está baseada na descriminalização do usuário de drogas e sobre como aplicar tal política. De fato, observa-se um movimento em direção a políticas que diferenciam os usuários dos traficantes e que conciliam estratégias de repressão ao crime organizado com ações de prevenção, tratamento e atenção para usuários. A recente decisão da corte suprema argentina, que considerou inconstitucional um artigo da lei que prevê pena de prisão para usuários de drogas ilícitas portando pequenas quantidades para uso pessoal, e também a nova lei aprovada no México, mostram que existe uma tendência de que os recursos do sistema de justiça criminal e de segurança pública sejam direcionados não aos usuários de drogas, mas aos traficantes, aos financiadores do tráfico e ao crime organizado.

Nesse sentido, percebe-se a necessidade de se investir numa repressão qualificada, direcionada por ações de inteligência policial, para efetivamente reduzir a oferta de drogas. Isso requer um maior foco nos grupos transnacionais, sustentadores dos traficantes que vendem drogas no varejo. Não adianta prender apenas os "aviõezinhos" ou "mulas", que são a parte menos beneficiada desse comércio ilegal. Não adianta prender somente essas pessoas, que são facilmente substituídas na engrenagem do tráfico. É preciso realmente identificar as altas hierarquias do tráfico e tirá-los de suas posições de comando. Além disso, é preciso também que o crime organizado e a corrupção associada a ele não sejam enfrentados de maneira isolada, mas por meio da cooperação internacional entre as autoridades competentes.

Áreas fora do controle das estruturas governamentais, nos contextos urbanos, devem ser "reconquistadas", com ações contínuas de desenvolvimento econômico e social. Muitos jovens se envolvem com pequenas atividades de narcotráfico, por ser uma opção fácil de conquistar renda e status. Mas é possível reverter essas opções para os jovens marginalizados.

Em termos de redução de consumo, é preciso fortalecer a promoção de campanhas informativas e ações de prevenção, combinadas à oferta de acesso universal de tratamento e atenção para usuários, sempre dentro de uma perspectiva de direitos humanos e de cidadania. Deslocar o foco da justiça criminal para a educação, a saúde e a assistência social requer o fortalecimento das ações integradas de informação e de redes de atendimento e de instituições como os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas, chamados CAPS AD. Para isso, é fundamental que os diferentes setores do governo e da sociedade civil que trabalham a questão das drogas mantenham um diálogo e uma articulação constantes.

No campo da saúde, vale lembrar que este ano foi marcado por três importantes decisões no âmbito das Nações Unidas. A primeira ocorreu em março, com a aprovação de uma declaração na qual a Comissão de Narcóticos, observando um aumento da incidência do HIV entre usuários de drogas injetáveis, reafirmou o compromisso de trabalhar para alcançar a meta do acesso universal a programas de prevenção e serviços relacionados de tratamento, atenção e apoio. Em junho, o UNAIDS recomendou que as agências das Nações Unidas apoiem os governos nacionais na promoção do acesso de serviços de saúde para usuários de drogas. E em julho, a ONU adotou uma resolução no sentido de ampliar e fortalecer o trabalho com os governos nacionais e os grupos da sociedade civil, a fim de responder aos desafios em relação ao acesso a serviços para usuários de drogas injetáveis em todos os contextos, inclusive em prisões, além de combater as questões associadas ao estigma e à discriminação.

O reforço desse tema como prioridade internacional leva a reflexão de que, nas condições atuais, se já é difícil atender toda a demanda de quem procura atendimento, deve-se considerar também um possível aumento no custo para o sistema de saúde, com a descriminalização do usuário.

Assim como o álcool e o tabaco estão cada vez mais restritos - e praticamente ninguém se opõe a essa progressiva regulação - o abuso de drogas corre sérios riscos de atingir os direitos coletivos, que devem ser preservados. Há quem defenda que o uso de drogas e o risco do dano a si próprio seja assunto da esfera privada das pessoas. Mas é preciso perceber que a tensão entre os direitos individuais e os direitos coletivos muitas vezes é resolvida com a prevalência do que é coletivo, pois a escolha de usar drogas, em alguns casos, traz consequências e impactos à coletividade, seja no âmbito da família, do trabalho ou da sociedade como um todo.

Mas, como já falamos, nenhum país está realmente propondo a legalização das drogas. Nesse sentido, o impacto de uma eventual legalização seria realmente incalculável, do ponto de vista de saúde, de segurança pública e do risco social que traria.

A dimensão do Brasil, um país com uma população de mais de 190 milhões de habitantes e um território de dimensões continentais, representa desafios especiais. Quatro de seus países vizinhos são grandes produtores de drogas, que também entram no território brasileiro. As respostas e políticas ao desafio das drogas devem levar em conta essas peculiaridades. Certamente, as experiências de outros locais, mesmo os pequenos países ricos da Europa, podem servir de inspiração. Porém, é necessário se levar em conta que a transposição de políticas a diferentes contextos deve ser adaptada a cada realidade específica.

Deve-se compreender também que não se trata de contrapor uma postura "liberal" a favor da legalização a uma posição "conservadora" de controle, mas de conciliar uma abordagem de atenção e de prevenção, com o combate focado no crime organizado. Em última análise, o debate sobre as drogas revela muito mais convergências do que divergências: a busca por uma abordagem equilibrada entre as ações de prevenção, de assistência, de tratamento e de repressão ao crime organizado.

Nesse contexto, a realização deste seminário é uma iniciativa de grande importância, na busca por uma ação coordenada entre o governo, o parlamento, os organismos internacionais e a sociedade civil, que possa convergir em ações que efetivamente resultem em avanços nas questões sobre drogas.

20-10-2009